18/01/14

 
 
    À vrai dire, je garde toujours à l'esprit une autre possibilité, naturellement aussi très aventureuse, à savoir que le concept temporel serait effectivement une donnée de l'inconscient, mais il s'agirait là d'un temps qui se verrait en quelque sorte disloqué, de sorte que l'inconscient aurait la faculté de dépasser le cours normal du temps, percevant ainsi des choses qui n'existent pas encore. La substance de toute chose est en effet déjè présente dans l'inconscient. On rêve par exemple souvent d'événements qui ne se dérouleront que le lendemain ou même encore plus tard. L'inconscient ne se préocupe pas de notre perception habituelle du temps, ni de la relation causale des choses entre elles. L'étude de séries de rêves permet également de le vérifier: en effet, la série de rêves ne représente pas une suite chronologique d'événements au sens de notre perception habituelle du temps. Il est pour cette raison très difficile d'y repérer un avant et un après. Si nous voulions caractériser l'essence même de la série de rêves, nous ne dirions pas qu'elle représente une série chronologique (...) mais qu'elle se rattache à un centre non identifiable à partir duquel les rêves rayonnent. (...)
    Du fait que les rêves ne parviennent à la conscience que l'un après l'autre, nous leur attribuons une certaine qualité temporelle et les relions entre eux de façon causale. Or il n'est pas démontré que la suite réele d'un premier rêve ne parvienne qu'ultériurement à la conscience. La série qui nous paraît chronologique n'est pas la véritable série. Cette explication ne représente en fait qu'une concession de notre part à notre perception habituelle du temps. Un nouveau thème peut très bien apparaître dans un rêve, avant de disparaître pour céder de nouveau la place à un thème antérieur. La véritable configuration du rêve est radiale: les rêves rayonnent à partir d'un centre, et ne viennent qu'ensuite se soumettre à l'influence de notre parception du temps. Les rêves se subordonnent en réalité à un noyau central de signification. 
 
 
Jung, Carl Gustav. Sur l'interprétation des rêves. Paris: Albin Michel, 1998, 21 - 22.
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13/01/14



 
 
Não é difícil entender por que os psicopatas são atraídos para o crime de colarinho branco e se dão bem nesse nicho. Em primeiro lugar, há um monte de oportunidades rentáveis à mão. Como disse um dos sujeitos que entrevistámos, condenado por vender ações corporativas forjadas: "Eu não estaria na prisão se não houvesse tantos potes de biscoito implorando que eu enfiasse a mão dentro deles" (...)
Em segundo lugar, os psicopatas têm todas as ferramentas de que precisam para fraudar e enganar os outros: eles são convincentes, encantadores, seguros de si, hábeis em situações sociais, frios sob pressão, inteiramente implacáveis e não se intimidam com o risco de serem apanhados. Quando desmascarados, continuam a agir como se nada tivesse acontecido e, com frequência, deixam seus acusadores desnorteados e incertos a respeito de suas próprias posições.
Finalmente, o crime de colarinho branco é lucrativo, os riscos de os fraudadores serem descobertos são mínimos e as penalidades não costumam passar de triviais (...) Em muitos casos, as regras do jogo da ganância e da fraude colocadas em prática em grande escala não são as mesmas aplicadas ao crime comum. Com frequência, os jogadores da ganância e da fraude formam uma rede livremente estruturada para proteger seus interesses mútuos: eles são da mesma classe social, frequentaram as mesmas escolas, pertencem aos mesmos clubes (...).
É claro que a mentira e a manipulação patológicas não são exclusivas de psicopatas. O que torna os psicopatas diferentes dos outros é a incrível facilidade com que mentem, o alcance de sua fraude e a frieza com que colocam seus planos em prática.
No entanto, há algo mais, igualmente intrigante, no discuro dos psicopatas: eles costumam usar declarações contraditórias e logicamente inconsistentes que, em geral, passam despercebidas. Pesquisas recentes sobre a linguagem dos psicopatas fornecem algumas pistas importantes para a solução desse quebra-cabeça e também servem para explicar sua fantástica habilidade de manipular palavras - e pessoas - com tanta facilidade (...).
Essas observações clínicas tocam no ponto crítico do mistério da psicopatia: a linguagem de duas dimensões, sem profundidade emocional.
Uma analogia simples pode ajudar. O psicopata é como uma pessoa que não enxerga cores, que vê o mundo em sombras cinzentas, mas que aprendeu como deve agir no mundo colorido (...) o psicopata não tem um elemento importante da experiência: nesse caso, o aspecto emocional, mas consegue aprender as palavras que os outros usam e, assim, é capaz de descrever ou de imitar experiências que na verdade não consegue entender. Como coloca Cleckley: "Ele pode aprender a usar pralavras comuns... e também aprende a reproduzir de modo apropriado os gestos, as expressões faciais e os movimentos do sentimento... mas não experimenta o sentimento real."
 
 
 
   Hare, Robert D. . Sem Consciência, o mundo perturbador dos psicopatas que vivem entre nós. Porto Alegre: Artmed, 2013, pp 130 - 137.
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12/01/14

(Nota - este blogue, preferencialmente dedicado à literatura, tem também uma considerável lista de autores pertencentes Psicologia Social, Psicologia Clínica e Psicanálise. O psicólogo canadiano Robert Hare é hoje um dos principais especialistas em psicopatias e responsável pela elaboração da Psychopathy Checklist, instrumento universalmente aceite como escala para medir os graus de psicopatia. Segundo Hare, numa entrevista que concedeu, "cerca de um por cento da população mundial preencheria os critérios para o diagnóstico de psicopatia", ou seja, só nos EUA poderão existir cerca de três milhões de psicopatas. Nesta obra são clarificados todos os critérios, diversidade de tipos, bem como os comportamentos específicos do psicopata, é, aliás, interessante a página em que Hare nos diz que este tipo de personalidade pode ser encontrada nos mais diversos lugares: no duro e frio político, no ávido e insensível financeiro e até mesmo no ardiloso e cruel chefe de família. A obra aqui publicitada, apesar de fundamental, só pode ser encontrada na sua tradução para português variante do Brasil.)
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   Os psicopatas têm uma visão narcisista e exageradamente vaidosa de seu próprio valor e importância, um egocentrismo realmente espantoso, acreditam que têm direito a tudo e consideram-se o centro do universo, seres superiores que têm todo o direito de viver de acordo com suas próprias regras. "Não é que eu não cumpro as leis", disse um dos sujeitos da nossa pesquisa. "Eu sigo as minhas próprias leis. Nunca violo minhas próprias leis." Em seguida, descreveu essas regras nos seguintes termos: "escolhendo a número um".
(...) Os psicopatas com frequência se comportam como pessoas arrogantes e vaidosas, sem nenhuma vergonha - são seguros de si, de opinião firme, dominadores e convencidos. Adoram ter poder e controle sobre os demais e parecem incapazes de reconhecer que as outras pessoas têm opiniões próprias válidas. Parecem carismáticos ou "electrizantes" para alguns.
   Raramente os psicopatas ficam constrangidos com problemas jurídicos, financeiros ou pessoais. Em vez disso, consideram esses problemas como derrotas temporárias, resultado da má sorte, de amigos traidores ou de um sistema injusto e incompetente..
   Embora com frequência digam ter objetivos específicos, na verdade, os psicopatas demonstram pouca compreensão das qualificações necessárias - não fazem ideia do que precisam para alcançar objetivos e têm pouca ou nenhma chance de alcancá-los, dado seu histórico de desempenho e a oscilação de seu interesse na formação educacional.
(...) Os psicopatas mostram uma assombrosa falta de preocupação com os efeitos devastadores de suas ações sobre os outros. Com frequência, são completamente diretos sobre o assunto e declaram, com tranquilidade, que não sentem nenhuma culpa, não sentem remorsos pela dor e destruição que causaram e não veem motivo para se preocupar.
(...) A falta de remorso ou de culpa do psicopata está associada com uma incrível habilidade de racionalizar o próprio comportamento e de dar de ombros para a responsabilidade pessoal por ações que causam desgosto e desapontamento a familiares, amigos, colegas e as outras pessoas que seguem as regras sociais. Em geral, os psicopatas têm desculpas prontas para o seu comportamento e, às vezes, até negam completamente  que o fato tenha acontecido.(...) Perda de de memória, amnésia, blecautes, múltipla personalidade e insanidade temporária brotam constantemente em interrogatórios de psicopatas (...) Em uma distorção irônica, os psicopatas com frequência consideram que as vítimas são eles próprios.
 
 
  Hare, Robert D. . Sem Consciência, o mundo perturbador dos psicopatas que vivem entre nós. Porto Alegre: Artmed, 2013, pp 53 - 58.
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10/01/14

 
 
   - As velas - diz distraído, quando lhe saltam à vista os restos fumegantes das velas do candelabro, colocado na borda da lareira. - Olha, as velas arderam até ao fim.
   - Duas perguntas - diz repentinamente Konrád, numa voz apagada -, disseste que eram duas perguntas. Qual é a outra?...
   - A outra?... - responde o general. Inclinam-se um para o outro, como dois velhos cúmplices que têm medo das sombras da noite e de que as paredes os ouçam. - A outra pergunta?.... - repete sussurrando. - Mas se não respondeste à primeira... Olha - diz numa voz muito baixa -, o pai da Krisztina acusou-me de ter sobrevivido. Queria dizer que tinha sobrevivido a tudo. Porque uma pessoa não responde só com a sua morte. Essa é uma boa resposta. Mas responde também, se sobrevive a alguma coisa. Nós dois, sobrevivemos a uma mulher - diz num tom confidencial. - Tu, ao te ires embora, eu, ao ficar aqui. Sobrevivemos com cobardia ou com cegueira, com ressentimento ou com prudência, o facto é que sobrevivemos.(...) Quem sobrevive ao outro é sempre traidor. Sentíamos que tínhamos de viver, e não é possível atenuar isso, porque ela é que morreu. Morreu, porque te foste embora, morreu porque eu fiquei e não me aproximei dela, morreu porque nós dois, homens, a quem ela pertencia, fomos mais vis, orgulhosos, barulhentos e silenciosos que o que uma mulher podia suportar, porque fugimos dela e a traímos, porque lhe sobrevivemos. Essa é a verdade. Tens de saber isso, enquanto estiveres em Londres, quando tudo acabar, na última hora, sozinho. Eu também saberei, nesta casa: e já o sei. Sobreviver a alguém, a quem amámos tanto (...), a quem estávamos ligados de tal maneira que quase morremos por isso, é um dos crimes mais misteriosos e inqualificáveis da vida. Os códigos penais não conhecem esse crime. Mas nós os dois sabemos (...) nós estamos vivos, e nós os três estávamos ligados duma maneira ou de outra, na vida e na morte (...) E o que importa tudo aquilo que as pessoas pensam sobre isso? Nada - diz com simplicidade. - No fim, o mundo não importa nada. Só importa o que fica nos nossos corações.(...) Gostava que me dissesses (...) qual é a tua opinião sobre isso? Pensas também que o significado da vida não seja outro senão a paixão, que um dia invade o nosso coração, a nossa alma e o nosso corpo, e depois arde para sempre, até à morte?(...) É assim tão profunda, tão maldosa, tão grandiosa e desumana a paixão?(...) Essa é a pergunta.(...) Responde, se sabes responder - diz alto e insistente.
   - Porque perguntas? - replica o outro tranquilamente. - Sabes que é assim.
(...)
   - Agora estás mais tranquilo? - pergunta a ama.
   - Sim - diz o general.
    Caminham juntos (...) O general avança lentamente, apoiando-se na bengala. Percorrem o corredor, cheio de quadros pendurados na parede. A mancha que indica o lugar do retrato da Krisztina, faz parar o general.
   - O quadro - diz - já podes voltar a pô-lo no lugar.
   - Sim - responde a ama.
   - Não tem importância - diz o general.
   - Eu sei.
   - Boa noite, Nini.
   - Boa noite.
 
 
    Márai, Sándor. As velas ardem até ao fim. Lisboa: Pub. Dom Quixote, 2004, pp 150 - 153.
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09/01/14

 
 
Uma pessoa sabe sempre a verdade, essa outra verdade que é oculta pelas representações, pelas máscaras e pelas circunstâncias da vida. Os dois rapazes foram educados juntos, prestaram juramento juntos, viveram juntos durante anos, enquanto estiveram em Viena, porque o oficial da guarda encontrou maneira de o filho e Konrád passarem os primeiros anos de serviço perto da corte (...).
   Konrád era "uma pessoa diferente" e não era possível a ninguém aproximar-se com perguntas do seu segredo. Estava sempre calmo. Nunca discutia. Vivia, cumpria os seus deveres, comunicava com os companheiros, movia-se na sociedade e no mundo, como se o serviço militar nunca terminasse (...) e o filho do oficial da guarda notava com preocupação que Konrád vivia como um monge.
(...) O filho do oficial da guarda implorava em voz baixa que Konrád partilhasse com ele os seus bens, dos quais não sabia bem o que fazer. Konrád explicava-lhe que não podia aceitar nem um tostão. E ambos sabiam que isso era verdade: o filho do oficial da guarda não podia dar dinheriro a Konrád e tinha de suportar andar no mundo, levar uma vida digna da sua posição e do seu nome, enquanto Konrád, em casa, no apartamento de Hietzing, jantava ovos mexidos cinco noites por semana e contava pessoalmente as peças de roupa interior chegadas da lavandaria. Mas isso não era importante. O facto mais assustador era que, além do dinheiro, aquela amizade devia ser salvaguardada para a vida. Konrád envelhecia depressa. Aos vinte e cinco anos de idade já usava óculos para ler. E à noite, quando o amigo chegava de Viena e do mundo, a cheirar a tabaco (...) conversavam em voz baixa durante muito tempo, como se Konrád fosse um mágico que passasse o tempo sentado em casa a matar a cabeça sobre o sgnificado do ser humano e dos fenómenos, enquanto o seu fâmulo andava pelo mundo e recolhia notícias secretas da vida humana. Konrád, de preferência, lia livros ingleses sobre a história da convivência dos homens e sobre o desenvolvimento social. O filho do oficial da guarda apenas lia com prazer livros sobre cavalos e viagens. E porque gostavam um do outro, ambos perdoavam ao outro o pecado original: Konrád perdoava ao amigo a riqueza, o filho do oficial da guarda perdoava a Konrád a pobreza.
   Aquela "diferença" de que o pai tinha falado, quando Konrád e a condessa haviam tocado a Fantasie polonaise, conferia a Konrád um certo poder sobre a alma do amigo.
 
 
  Márai, Sándor. As velas ardem até ao fim. Lisboa: Pub. Dom Quixote, 2004, pp 41 - 46.
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07/01/14

 
 
   A maré estava a mudar, começava a tornar-se estrondosa e violenta. Daphne sentiu que ele estava a afastar-se dela; ele sentiu que a decepcionara.
   Ela pegou-lhe na mão e reconduziu-o à cabana. Quando passavam entre os arbustos um rapaz de cor aproximou-se com um bilhete na mão. Era da loja local, a mais de quilómetro e meio de distância, onde havia um telefone.
   O bilhete dizia: "Daphne, ele tem de estar de novo a bordo amanhã ao meio-dia. Betty."
   Ela disse ao rapaz, que conhecia de viagens anteriores, ali, com o marido:
   - Vem comigo à cabana, para te dar algum dinheiro.
   Assim foi. Ele lançava-lhe olhares estranhos, e era natural: julgaria que aquele dinheiro era um suborno?
   Depois ela disse a James:
   - Hora-limite para ti: meio-dia, amanhã.
   - Não vou.
   - Temos outra tarde e outra noite.
   - Temos as nossas vidas inteiras.
   Dentro da cabana sentiram-se de novo juntos na maneira de sentir; o vazio que se apoderara deles junto do mar desaparecera.
   - Voltarei para ti, depois da guerra.
   Ela abraçou-o com força, com a cabeça no seu ombro. E sentiu a pele áspera debaixo da face.
   - Não acreditas em mim - disse ele, meigamente, ternamente, como se falasse com um criança -, mas é verdade.
(...)
   - Recordar-te-ei assim. Pareces uma rapariguinha, com o cabelo todo revolto. E o teu rosto precisa de ser lavado.
   Quando regressaram ao carro, por entre os arbustos, farrapos de espuma branca esvoaçavam num vento frio e salpicavam os arbustos.
   Ela conduziu em silêncio. Ele observou-a durante todo o caminho - ela recebeu aquele longo olhar como se fosse um prolongado abraço.
(...)
   Meio da tarde. O grande navio erguia-se no seu ninho de rendas de espuma branca. Daí ver-se a actividade do embarque: rastejavam formigas por todo o lado, no navio.
   Daphne não se mexia (...) A negra ergueu-lhe o braço flácido e colocou-lhe a chávena na mão.
   - Precisa de tomar um chá, madama.
   Daphne manteve-se imóvel, de olhos postos nas docas (...) deu um grito e tapou a boca com o punho cerrado. Depois disse:
   - Sou uma mulher muito perversa, sabes? Não amo Joe. Nunca amei. Casei com ele sob falsos pretextos. Devia ser castigada por isso.
(...)
   - Oh, meu Deus - lamentou-se Betty, lançando um último olhar à amiga, que estava ali caída, abatida. Algures para lá do horizonte aquele soldado ia a caminho do Norte no negrume do oceano Índico.
 
 
 
   Lessing, Doris. " Um filho do amor " in As avós e outras histórias. Barcarena: Editorial Presença, 2008, pp 225 - 229.
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06/01/14

 
   Mas Ian não evidenciava quaisquer sinais de querer renunciar a Roz, pelo contrário. Era atencioso, exigente e possessivo, e quando, um dia, a viu deitada nas suas almofadas, logo após terem feito amor, a alisar a pele frouxa e a envelhecer dos antebraços, soltou um grito, apertou-a contra si e suplicou:
   - Não, por favor, não, não penses sequer nisso. Não te deixarei envelhecer.
   - Bem respondeu ela -, vai acontecer, apesar disso.
   - Não! - E chorou, do mesmo modo que chorara quando era ainda o assustado rapaz abandonado nos braços dela. - Não, Roz, por favor, eu amo-te.
   - Não devo, portanto, envelhecer? É isso, Ian? Tal não me é permitido? Louco, o rapaz está louco - disse Roz, dirigindo-se a ouventes  invisíveis, como fazemos quando a sanidade mental parece não ter ouvidos.
   Sozinha, sentiu inquietação e, na verdade, pavor. Era loucura, o que ele lhe exigia. Parecia, realmente, recusar-se a pensar que ela podia envelhecer. Loucura! Mas talvez a insânia seja uma das grandes rodas invisíveis que mantêm o nosso mundo a girar.
 
 
    Lessing, Doris. " As Avós " in As Avós e outras histórias. Barcarena: Editorial Presença, 2008, p 40.
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05/01/14

 
 
   Os rapazes nadavam para a praia. Quando chegaram às ondas baixas pararam e entreolharam-se. Começaram a lutar um com o outro.(...) não havia nada de infantil naquela luta. Estavam de pé, com a água pela cintura, as ondas a avançarem, a fustigarem-nos com espuma e a recuarem, e depois Ian desaparecera e Tom empurrava-o para baixo. Veio uma onda, depois outra, e Lil levantou-se, angustiada, e exclamou:
   - Oh, meu Deus, ele vai matar o Ian. O Tom vai matar...
(...) - Cala-te, Lil - disse Roz. - Não nos devemos intrometer.
(...) Tom soltou um grande grito e largou Ian, que veio à tona. Quase não conseguia manter-se de pé, caiu, voltou a levantar-se e ficou a observar Tom que avançava por entre as ondas da praia. Quando Tom pisou a areia escorria-lhe sangue da barriga da perna. Ian mordera-o, bem fundo debaixo das ondas. Era uma dentada com mau aspecto. De pé dentro de água, Ian cambaleava, sufocado e ofegante.
   Roz lutou consigo mesma e depois correu para as ondas e ajudou-o a sair do mar (...).
   As mulheres fitavam aqueles dois jovens heróis, seus filhos, seus amantes, aqueles belos jovens cujos corpos reluziam de água e óleo protector solar, quais lutadores de um tempo mais antigo.
   - Que vamos nós fazer, Roz? - sussurrou Lil.
   - Eu sei o que vou fazer - respondeu a amiga, levantando-se- - Almoço! - Gritou, exactamente como fazia há anos, e os rapazes levantaram-se obedientemente e seguiram-nas para casa de Roz.
   Acrescentou, dirigindo-se ao filho:
   - Acho melhor desinfectares isso.
(...) Lil disse a Roz que se sentia tão feliz que até tinha medo. "Como é possível alguma coisa ser tão maravilhosa?", perguntava baixinho, com medo de que alguém a ouvisse - mas quem? Não havia ninguém nas proximidades. O que ela queria dizer, e Roz sabia-o, era que uma felicidade tão intensa devia ter o seu preço, o seu castigo. Roz falava alto e em tom de brincadeira, dizia ser aquele um amor que não ousava dizer o seu nome, e cantarolava:
   - Amo-te, sim, amo-te, é pecado mentir...
   - Oh, Roz... às vezes tenho tanto medo.
   - Que disparate! Não te preocupes. Não tarda, eles cansam-se das mulheres velhas e vão atrás de raparigas da sua idade.
 
 
 
    Lessing, Doris. " As Avós " in As avós e outras histórias. Barcarena: Editorial Presença, 2008, pp 33 - 36.
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Nota - Foto do filme "Two mothers" baseado no conto "The grandmothers" de Doris Lessing.
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03/01/14

 
 
 
   Tinhas partido e era eu que ficava em casa, à tua espera. Como Penélope, era eu que te esperava, que mantinha a esperança. Contra o mais elementar senso comum.
   Mas um dia, ao contrário dela, deixei de esperar. Percebi que não voltarias, que ninguém volta, que o regresso não é possível: nunca ninguém se banha duas vezes na mesma água de um rio.
   Percebi que a minha fidelidade era louca, que a vida me passava ao lado. O universo estava em movimento e também eu comecei a mover-me.
(...) Percebi que, se voltasses, eu ficaria sentado à tua frente em silêncio e não poderia comunicar contigo: haveria entre nós a barreira do tempo.
   Porque não é possível alguém voltar ao leito conjugal e fazer amor, contar o que sucedeu durante os anos de ausência, enquanto uma deusa faz com que a noite se prolongue e o dia tarde a nascer para termos tempo de contar o tempo intermédio e tudo voltar a ser como era, desde o momento em que foi interrompido.
   Nada disso era possível, a não ser numa história mal contada.
   Tínhamos saído da vida um do outro, cada um tinha agora a sua.
   Então assumi que não irias voltar.
   Um dia acordei com essa certeza: nunca irias voltar.
   E Lisboa desapareceu contigo.
 
 
   Gersão, Teolinda. A Cidade de Ulisses. Porto: Sextante Editora, 2011, pp 152 - 153.
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   A tua visão podia ser também assim: pragmática. Ou, segundo dizias, realista e útil.
   No entanto não conseguias ser de facto realista. O amor, enquanto durava, transformava tudo.
   E nada tínhamos a ver com turistas. Éramos diferentes. Viajantes.
   Os turistas vão à procura de lugares para fugirem de si próprios, da rotina, do stress, da infelicidade, do tédio, da velhice, da morte. Vêem os lugares onde chegam apenas de relance e não ficam a conhecer nenhum, porque logo os trocam por outros e fogem para mais longe. Os viajantes vão à procura de si, noutros lugares. Que ficam a conhecer profundamente porque nenhum esforço lhes parece demasiado e nenhum passo excessivo, tão grande é o desejo de se encontrarem.
   As agências de viagens e os turistas só se interessam, obviamente, pelas cidades reais. Os viajantes preferem as cidades imaginadas. Com sorte, conseguem encontrá-las. Ao menos uma vez na vida.
   Penso que uma vez na vida a sorte esteve do nosso lado e encontrámos a cidade que procurávamos. A Cidade de Ulisses.
 
 
   Gersão, Teolinda. A Cidade de Ulisses. Porto: Sextante Editora, 2011, p 31.
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02/01/14

 
 
 
   Estou sentado à minha janela, na tarde do mesmo dia, e contemplo a cidade, que se estende a meus pés, banhada pelo crepúsculo. Os sinos cessaram os seus dobres. As cúpulas dos templos e as habitações dos homens começam a desvanecer-se na obscuridade. O fumo da pira funerária serpenteia pelo meio de tudo o que os meus olhos avistam, e o seu cheiro ácido chega às minhas narinas. Um véu espesso estende-se sobre tudo; dentro em pouco, a escuridão será completa.
   Terá a vida uma finalidade? Para que serve ela? Qual é o seu sentido? Porque continua ela sempre, tão melancólica e vazia?
   Volto para a terra o archote que me ilumina, para o extinguir, e é a noite.
 
 
 
  Lagerkvist, Pär. O Anão. Lisboa: Antígona Editores, 2013, p 163.
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01/01/14





   O que sobretudo me aborrece é que Dom Ricardo tome parte no combate. Por todo o lado ele mostra a sua bazófia, principalmente na presença do príncipe, e as suas grosseiras facécias provocam o riso estúpido dos acompanhantes. Tem o aspecto dum tolo, com a sua cor trigueira de campónio e os grandes dentes brancos que continuamente mostra, pois ri de tudo. A sua maneira de atirar a cabeça para trás e de retorcer os anéis da barba castanha é para mim odiosa. Não compreendo como o príncipe pode suportar-lhe a presença.
   Ainda menos compreendo como pode a princesa sentir atracção por este indivíduo vulgar, pois ele é vulgar, embora de antiga nobreza. Mas tal assunto não tem qualquer interesse para mim. Nem, afinal, para ninguém.
   Quando alguém diz que ele é valente, admiro-me. Como muitos outros, ele estava entre os combatentes da margem do rio, mas recuso-me absolutamente a crer que aí se tenha de qualquer forma distinguido. Não consegui avistá-lo nem durante um segundo. Certamente foi ele quem contou a toda a gente como se portara com valentia. E como, assim que abre a boca, toda a gente o escuta, conseguiu convencer os seus auditores. Pessoalmente não creio na sua bravura. É um insuportável fanfarrão, eis tudo.
   Valente ele? Só a ideia me faz rir!
   O príncipe é valente. Atira-se ao mais confuso da peleja e, em todos os pontos onde o combate é mais aceso, vemos o seu cavalo branco (...) Boccarossa é também naturalmente bravo (...). Falo segundo o que ouço dizer, pois sempre tenho estado demasiado longe dele para poder vê-lo, e não posso exprimir até que ponto lamento ter de perder semelhante espectáculo.
   Homens como o príncipe e ele são valentes, cada um à sua maneira. Mas Dom Ricardo! É grotesco compará-lo com eles.
 
 
   Lagerkvist, Pär. O Anão. Lisboa: Antígona Editores, 2013, pp 68 - 69.
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12/12/13

 
 
 
     Tinha o seu passaporte de emigrante, foi a Lisboa revalidá-lo. Voltou à aldeia triste, em que agora, com a invasão da floresta, se ouviam todas as noites uivar os lobos, esperar que lhe chegasse vez no barco negreiro. Não tardou que recebesse o aviso. Despediu-se, rosto iluminado por um clarão, que irradiava como uma aurora.
     - Aperta-me bem ao teu coração, meu filho, que não o tornas a ouvir bater! - gemeu o velho.
     - Qual, em menos de seis meses estou de volta.
     - Não te vejo mais! - e carpia-se e quase o estorcegava nos braços. Como era mais alto, regava-o ao mesmo tempo com lágrimas.
     Embarcou na camioneta da carreira, com a malinha de fibra como viera, estranho, corajoso, possuído duma serenidade fora do seu lugar e do tempo.
     - Desgraçado de quem é português! - exclamou o Jaime.
     - Mil diabos te levem! - redarguiu o avô. - A vida fazemo-la nós. Quem diz vida, diz nação. À morte os vendilhões!
     Ficaram na casinha velha, em suspenso, à espera como no cimo dum cabeço, cercado pelas cheias, de olhos arregalados para o horizonte.


   Ribeiro, Aquilino. Quando os Lobos Uivam. Amadora: Livraria Bertrand, 1974, p 393.
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10/12/13

 
                            "  PARTÍCULA 80  -  Poente no horizonte  "
 
 
____________ quando, no princípio dos inícios, Oblívio perguntou a Celso por que é que ele via o mundo assim                  tal qual como o via, Celso respondeu-lhe                  " é porque nos livros que li houve sempre uma vontade de bondade".
 
 
     Esta frase, um pouco vagarosa na apreensão do seu sentido, era aquela que ele lhe queria dizer. Era também um pouco espessa, mas tinha descontraídos os poros. Haveria vontade de bondade nos livros/ orifícios maiores da escrita? E interligações entre os seus orifícios _____________ malhas de desejo dos seus textos? O que desejavam e intuíam, na contenção dos seus conteúdos?
 
 
      Oblívio deu as mãos a Celso,
e ficaram a olhar, não um para o outro, mas para o horizonte, onde o sol vespertino, alcançando o poente, apunha o seu lacre.
 
 
 
  Llansol, Maria Gabriela. Os Cantores de Leitura. Lisboa: Assírio & Alvim, 2007, p 202.
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08/12/13



      "  PARTÍCULA  36  -  Que não tem as antenas curtas  "


______________  estou a vê-los de perfil, estão a beijar-se  _____  Celso e Oblívio  _____  por detrás do biombo. Revelar-se-á o seu ser por serem amantes através da relação concebida em amor erótico?
Ou falta mais?
O que falta na esticada visibilidade do biombo?
Como actuam os beijos?
São artistas pintores, simplesmente pobres e intensos, actores, clínicos, ensinadores ou roturas profundas?
São cantores. Já os ouvi cantar incomparavelmente. Cada um canta sozinho, esquecido do mútuo vagamundo que lhes percorre os corpos. A semelhança connosco, que os transcende, revela-se pelo canto. Seu número inteiro, que é divisível por dois, fendido em ambo, está assim aberto, como nós, ao amor ímpar.
 
 
  Llansol, Maria Gabriela. Os Cantores de Leitura. Lisboa: Assírio & Alvim, 2007, p 84.
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04/12/13


                                  "  CLXIV. desejo  "
 
 
_____________  há um encadeamento no voo de um pássaro sem nome.
     É uma ave de alerta, corvo-escuro, vindo de falésias costeiras. E o que encadeia são reminiscências de memórias, lidas num livro, em Parasceve.
      A legente sou eu, a tentar extrair de mim a aprendizagem do entendimento,
com quem me acasalei para toda a vida.
      Esta frase, li-a, pela primeira vez, em francês - por essa razão, não traduzo:
 
 
                       " Pour conserver une chose, il ne faut pas une cause moindre
                       que pour la créer à l'origine."
 
 
      Nos reflexos metalizados, vejo uma cotovia.
      Tais passeriformes são óptimos cantores, e ouvi esta a imitar a porciúncula - uma pequena porção do meu desejo.
 
      Uma revoada, com orlas pálidas no dorso, sobressaltou-se.
      Jorraram fluidos, impelidos por partículas de silêncio que se moviam com desigual intensidade: ____________ acautelar o silêncio____________  cumpri-lo efectivamente para que não nos rompa; verificar que ele é um Fluido, e que as imagens são ainda um simulacro das imagens do silêncio e que ___ sobre ele ___  a própria cor é inútil.
 
 
      Este silêncio ___ aqui ___, é por ainda papel que dominei com linhas de tinta e, ao relê-lo, inexprime-se porque eu choco o seu olhar quando o fluido se suspende sobre o seu fundamento.
 
 
                  " Querem conhecer mais sobre o mundo em que estais,
                  e para onde eu irei."
 
 
      e a mulher, que se há-de chamar "Umadelas", senta-se ao lado de si própria, e fica atenta às partes de ausência de vagido.
 
 
          ________  e suspendi.
 
 
 
   Llansol, Maria Gabriela. Amigo e Amiga, curso de silêncio de 2004. Lisboa: Assírio & Alvim, 2006, pp 217 - 218.
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       "  CXLIV. humano Bach  "


_____________  levei uns sapatos com umas solas um pouco gastas. À entrada do mini-mercado, havia uma mancha de azeite já limpo, mas recentemente derramado. Mesmo apanhada no seu centro, comecei a oscilar sem conseguir firmeza nas solas muito limpas para transpô-la. Veio um rapaz que me deu as mãos, e eu saí da mancha. Senti-me ___  ao reflectir nesse momento ___, um flutuante. Com corpo de experiência. Dádiva de viver uma perda de equilíbrio que não se assemelha a mim
 
                                                         uma esfera oca e cintilante nas mãos,
                                                         com que enfrentava a cabeça.
 
 
  Llansol, Maria Gabriela. Amigo e Amiga, curso de silêncio de 2004. Lisboa: Assírio & Alvim, 2006, p 192.
 

01/12/13



        "  LXXVII. recuperação  "


      Nesse rio,
quedou perplexa: tinham chegado mais algumas palavras. O bico do pássaro não pára de bater.
 
      Ouviu então a voz      terrível,      sustentada pela nova melodia tocada pelas folhas:
      "mas a própria unidade do amor a que afectivamente aspiras não te ama porque se fragmenta." Pausa. "O que respondes ao que tu lhe pediste, e ele não deu?!"
      A pergunta foi tão certeira que a mulher sentiu-se cair, e ficou numa espécie de delírio. O urso escondeu o piano, lançando-se a comer toda a folhagem da cúpula. Decidira brincar com problemas sentimentais.
      - Mas é preciso escutar a parte séria da minha brincadeira - disse a Parasceve.
 
      Eu tinha anotado, na minha agenda, um encontro no sábado com um urso-de-colar que muito estimava, e que fora adiado para a próxima quinta-feira. Esqueci-me de recomendar-lhe que, entretanto, me mandasse uma mensagem para o exercício do som e das palavras. Postal que não vai certamente lembrar-se de mandar-me.
      - Eu sei que as regras do amor têm ritmo - imaginei que respondia Parasceve. - E não são cenas infantis - retorquiu-lhe, limpando com a língua uma lágrima que lhe deslizava pela face: - Seria um deserto se ninguém conhecesse esse ritmo.
 
      Sim, seria. Mas o amor é fraco, e logo vacila.
 
 
    Llansol, Maria Gabriela. Amigo e Amiga, curso de silêncio de 2004. Lisboa: Assírio & Alvim, 2006, p 105.
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29/11/13

 

       "  Queixume  "


eu era o aliado do orvalho,
companheiro da generosidade,
amigo das gentes e dos espíritos.

foi minha mão direita generosa
na hora da dádiva
e letal açoite no dia do combate.
a esquerda segurava as rédeas dos corcéis
para me arrojar no meio das lanças.

hoje sou cativo,
refém da pobreza,
presa da doença,
frágil pássaro de asas rotas.
já não posso acudir aos que me gritam,
suplicando dádivas,
nem aos mendigos que me pedem pão,
conheceste-me alegre? só ficou a tristeza
das penas, desterrando a alegria.

este aspecto que ora ofende a vista
já foi deleite dos olhares argutos.


   Al-Mu'Tamid in "Al-Mu'Tamid, poeta do destino ". Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, p 143.
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Nota- Poema dedicado ao filho al-Rashid e escrito aquando do desterro em Mequinez, antes de ser enviado para os calabouços de Aghmât.
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      "   'Itimad   "


Invisível a meus olhos,
     trago-te sempre no coração
Te envio um adeus feito paixão
     e lágrimas de pena com insónia.
Inventaste como possuir-me
     e eu, o indomável submisso vou ficando!
Meu desejo é estar contigo sempre.
     oxalá se realize tal vontade!
Assegura-me que o juramento que nos une
     nunca a distância o fará quebrar.
Doce é o nome que é o teu
     e que deixo escrito no poema: 'Itimad.


  Al-Mu'Tamid in "Al-Mu´Tamid, poeta do destino" de Adalberto Alves. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, p 101.
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Nota - Acróstico dedicado pelo rei de Sevilha à sua esposa 'Itimad, cujo nome é, portanto, formado com a letra inicial da cada verso. De todas as esposas, amantes e concubinas 'Itimad foi aquela que o rei-poeta designou como a sua rainha e que depois viria a acompanhá-lo no desterro em Aghmât.
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28/11/13


O poeta português NUNO JÚDICE recebeu ontem, em Madrid, o PRÉMIO RAINHA SOFIA DE POESIA IBERO-AMERICANA DE 2013.
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27/11/13


  " Regresso "


foste-te, e foi contigo
o sono dos meus olhos,
regressaste, e assim mo devolveste.


quem trouxe a boa nova
pediu-me alvíssaras:
o meu coração foi o que te dei
pedindo desculpa do pouco que valia.


  Al-Mu'Tamid in  " Al-Mu'Tamid, poeta do destino" de Adalberto Alves. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, p 88.
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Nota - epístola em verso dedicada pelo rei da Taifa de Sevilha ao poeta e amigo Ibn'Ammâr. Sobre este relacionamento ler: esta obra de Adalberto Alves, o romance de Ana Cristina Silva já aqui publicitado e a obra "Ibn'Ammâr, o drama de um poeta" da autoria de Adalberto Alves e Hamdane Hadjadji.
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26/11/13



                 " By disposition of angels "


Messengers much like ourselves? Explain it.
Steadfastness the darkness makes explicit?
Something heard most clearly when not near it?
        Above particularities,
these unparticularities praise cannot violate.
    One has seen, in such steadiness never deflected,
    how by darkness a star is perfected.


Star that does not ask me if I see it?
Fir that would not wish me to uproot it?
Speech that does not ask me if I hear it?
         Mysteries expound mysteries.
Steadier than steady; star dazzling me, live and elate,
    no need to say, how like some we have known; too like her,
    too like him, and a-quiver forever.


   Moore, Marianne. Poesía Reunida ( 1915 - 1951 ). Madrid: Hiperión, 1996, p 314.
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17/11/13



   " Light is speech "


One can say more of sunlight
    than of speech; but speech
    and light, each
aiding each - when French -
have not disgraced that still
unextirpated adjective.
Yes, light is speech. Free frank
impartial sunlight, moonlight,
starlight, lighthouse light,
    are language. The Creach'h
d'Ouessant light -
house on its defenseless dot of
rock, is the descendant of Voltaire

whose flaming justice reached
    a man already harmed;
    of unarmed
Montaigne whose balance,
maintained despite the bandit's
hardness, lit remorse's saving
spark; of Émile Littré,
philology's determined,
ardent eight-volume
    Hippocrates-charmed
editor: A
man of fire, a scientist of
freedoms, was firm Maximilien

Paul Émile Littré. England
    guarded by the sea,
    we, with re-enforced Bartholdi's
Liberty holding up her
torch beside the port, hear France
demand, "Tell me the truth,
especially when it is
    unpleasant. "And we
cannot but reply,
"The word France means
enfranchisemente; means one who can
'animate whoever thinks of her.' "


   Moore, Marianne. Poesía Reunida ( 1915-1951 ). Madrid: Hiperión, 1996, pp 222 - 224.
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15/11/13



             " To a prize bird "


You suit me well, for you can make me laugh
nor are you blinded by the chaff
    That every wind sends spinning from the rick.


You know to think, and what you think you speak
with much of Samson's pride and bleak
    finality, and none dare bid you stop.


Pride sits you well, so strut, colossal bird.
No barnyard makes you look absurd;
     you brazen claws are staunch against defeat.


    Moore, Marianne. Poesía Reunida ( 1915 - 1951 ). Madrid: Hiperión, 1996, p 86.
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13/11/13


(...)

confinando-se em cubos sobre cubos,
periferias cinza onde se reproduzem,
dormem e só às vezes falam.

Derretem-se de sono em lama orgânica,
olhares de cristal brilham de súbito,
apanha-os a enxurrada

à entrada do metro,

à saída do ferry,

no tráfego contínuo da avenida,
autocarros e táxis, mas não as
negras berlinas rápidas que fogem
dos novos proletários de olhar cúpido,

brilhante, nuns,
em outros conferindo
o desgaste de sonhos paranormais,
sobrolho negro que encara
rostos sem culpa,

aturdidos pelo alto muro
que ninguém saltará,
prisão de segurança máxima,

e ainda assim alguém exclama
diante do parlamento: "Olhem".
Exibe uma Kalashnikov,
triunfo oculto de África.

Apoia o queixo na boca do cano
e uma rajada leva-lhe
metade da cabeça
e o sangue de uma vida.

Junta-se cada vez mais gente,
um megafone incita-a,
a multidão ulula,
e depressa a polícia chega,
bate a esmo, destroça-a
e recolhe o cartaz em que se lê:

Não quero ser um cão selvagem
a comer das lixeiras.

Foi notícia um só dia nos jornais,
não sei se na TV a censuraram,
os vivos esqueceram-na
e não se falou mais de imolação

(...)

enquanto a piza e o hambúrger
atraem a passeios no shopping,
avenidas de luz e cor, a brisa
do ar condicionado com cheiro a maresia,

usufruto, riqueza estúpida,
o chamariz das montras proibidas,

assim este país antigo
igual a todos,
porém confuso e exausto.

Não sei de onde esta gente herdou
tamanha sujeição.


  Dempster, Nuno. Uma paisagem na web. Lisboa: &etc, 2013, pp 27 - 30.
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11/11/13



            " Achill "


Deito-me e imagino a primeira luz a raiar a baía,
Depois de mais uma noite de erosão, mais perto da tumba.
Então, levanto-me e olho pela janela, ao romper do dia,
Enquanto uma pardela rasa o ápice de uma onda prestes a rebentar,
E penso no meu filho, golfinho no Egeu,
Elfo por entre velas, brilhante como lâmina no vento sazonal,
E queria que ele aqui estivesse, onde os botes cruzam o mar,
Para apaziguar com a sua voz a solidão encarcerada dentro de mim.

Sento-me numa pedra, depois do almoço, e olho a claridade do sol
Por entre a neblina, pérola de uma lâmpada, sobriamente feroz;
Um aguaceiro escurece por momentos o xisto,
Depois afasta-se, dispersando manchas negras como abrunhos.
Croagh Patrick ergue-se, como Naxos, acima da água,
E penso na minha filha, no trabalho duro da sua arte.
Queria que ela aqui estivesse comigo, agora, entre tordo e tarambola,
Tomilho-bravo e estancadeira, para abrandar o peso do meu coração.

Os jovens sentam-se, a fumar, a rir, sobre a ponte, ao final da tarde,
Como pássaros pousados num fio de telefone, ou notas musicais numa pauta.
O silvo de uma flauta no salão. Chove de novo,
O fumo da turfa oscila, soa o vento sob a porta;
E eu deito-me, a imaginar as luzes que se ligam no porto
De Náousa, com seu casario branco, claramente definido na noite.
Queria que aqui estivesses, para me desviares do meu labor desconsolado,
Enquanto passo os olhos numas quantas páginas efémeras e apago a luz.


   Mahon, Derek. Estradas Secundárias, Doze Poetas Irlandeses. Lisboa: Artefacto, 2013, p 65 ( Selecção, Posfácio e Tradução de Hugo Pinto Santos)
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05/11/13



A poeta e jornalista Maria Augusta Silva e o romancista Pedro Foyos acabam de publicar um inédito meu no seu prestigiado site Casal das Letras . Bem-Hajam!
 
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04/11/13

 
 
 
  " Secção 2 da Parte I do Poema Gente Dois Reinos "
 
 
 
Depois foi o dia do jardim. Do templo
aberto por certeiro acaso, como dizem
todos os peritos do não destino: sábios
magnificentes do que não se sabe, nem
sequer uma única vez. Foi o dia em que
te abri o passado, para que alguém
- finalmente - o destruisse na imperiosa
urgência que um outro de mim pudesse ousar
e, destecendo finíssimo casulo, um caminho
- impoluto - me pusesse à frente sem álibis
nem veredas. Sim, era mais um dia entre o éter
e o fogo, esses dois reinos que sempre somos,
mesmo se por momentos não os vemos
ou tendenciosamente os iludimos.
 
 
Mas talvez tu não existas. Talvez tu não
sejas mais do que a projecção de mim
criança, neste mesmo templo, pela mão
de uma qualquer criada velha, assistindo,
cheio de tédio, a um rito que não entendia.
Talvez tu não estejas ali à minha frente,
a observar cuidadosamente a talha dourada,
as imagens, os retábulos. Ah, os retábulos!
Quem sabe se não és apenas uma das suas figuras
que da fixidez cromática decidiu sair para questionar
meu ser e ausência? Talvez tu não sejas tu,
e eu, de máquina em punho, e a fazer zoom
para melhor te captar, não seja mais
do que um esgar aberto sobre a vastidão do vazio.
 
 
Talvez nada de ti exista, nem tão-pouco
a tua voz agora a meio metro de mim: " sabes
que no altar-mor está o túmulo de uma filha
de D. Manuel? " Mas que poderia eu saber
quando, naquela altura, tão ao invés do corpo,
do fogo e dos sentidos? E tu a perscrutares
o templo, esse templo de que fomos
chamados a cuidar e que, em medalhados
corredores de fundo, ao fundo atiramos
sem remorso nem culpa. Tu num dos cantos
mais sombrios, entre o roxo e os espinhos,
com um Cristo a lembrar-me um poema
de Antonio Machado. E eu a fixar esse ígneo
instante, esse efémero que transbordava.
 
 
Eu a querer, mas a máquina a não obedecer:
nem filtros, nem zoons, nem luz... nada!
Apenas o negro no pequeno rectângulo
que te desolava: " Vês, perdi a aura,
não consegues a foto porque perdi a aura
e nem sequer ao pé do Cristo ela aparece "
Quis dizer-te que não, que tudo era eu:
esta inaptidão para com uma mera lente
te roubar a alma; sim, esta minha incapacidade
danificara a máquina, baralhara as perspectivas,
curtocircuitara direções... Tudo isso quis eu
dizer, mas desculpei-me com esse acaso
em que não creio. E, por fim, vi de novo
a minha infância no resplendor do templo.
 
 
Vi a pequena imagem bordada a azul
e ouro. Vi a simetria das naves, o púlpito,
os adamascados, o enorme retábulo central
para onde, aos poucos, ias recuando:
essa terrífica pintura barroca onde o excesso
de dor sempre me repugnara
no que transmitia de domesticação
e de recusa da alegria que todo o sagrado é.
Tu agora disperso na estridência das cores,
numa percepção impura, como todas;
numa relação fantasiada, como todas também.
E tudo isso para que eu atravessasse
a porta, tal como entrara: circunspecto,
perdido, só - ah, tão entranhadamente só!
 
 
   Mateus, Victor Oliveira. Gente Dois Reinos. Fafe: Editora Labirinto, 2013, pp 19 - 21.
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                  "  O  Hospital  "


Há um ano, apaixonei-me pela funcionalidade de uma ala
De hospital: uma fila de compartimentos quadrados,
Betão, lavatórios - o desespero de qualquer amante de arte -,
Para não falar do modo como o fulano na cama ao lado ressonava.
Mas nada o amor interdita,
O comum, o banal, podem o calor dela conhecer.
O corredor conduzia a uma escadaria e, por baixo,
Ficava a imensa aventura de um pátio com gravilha.


É isto que o amor faz às coisas: a Ponte de Rialto,
O portão principal que o peso de uma carrinha amolgou,
O assento nas traseiras de uma cabana que era um foco de luz.
Nomear estas coisas é o acto de amor e a sua promessa;
Já que nos cumpre registar o mistério do amor sem desconversar,
Resgatar do tempo o passional transitório.


 Kavanagh, Patrick. Estradas Secundárias, Doze Poetas Irlandeses. Lisboa: Artefacto, 2013, p 19 ( Selecção, Posfácio e Tradução de Hugo Pinto Santos).
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03/11/13



                                XV


[ O3.00h, 3 garrafas de vinho e exaustão ] 
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. 
B.I.:) Sou de chorar: lugares-comuns em filmes
irrelevantes; actos de heroísmo vendáveis em
múltiplos; sofrimentos com rosto; inteligências ou
sensibilidades incompreendidas; solidões;
abandonos (a mesma coisa - uma solidão, mesmo
empenhada, é sempre um abandono, muitos);
memórias irrepetíveis e os seus ecos (The way we
were, still crazy after all these years, formulações
sintéticas em cançonetas); o sexo como
entrega/ abandono/ achamento/ epifania - as
melhores lágrimas, as mais confusas, inexplicáveis,
totais. Sermos livres dá vergonha por sermos
presos. Na mesma medida em que sermos presos
dá vergonha por sermos livres. As mulheres têm
vergonha de ser homens. Os homens têm vergonha
de ser mulheres. Todos temos vergonha de sermos
pessoas. Humanos. Só. Completamente. E, lá no
fundo, digamo-nos crentes ou ateus ou tudo o que
há no meio, sabemos quem pôs em nós essa
vergonha - o sacana que não conseguimos deixar
de amar mais do que a nós mesmos. Deus. Um
nome que é toda (um)a tesão. E que, para mim, tem
o teu rosto, tuas mãos, teus pés, teus joelhos, tua
nuca, teu cuspo, tua merda, o teu olhar perdido no
horizonte, uma melodia que se apoderou dos meus
ouvidos e do meu cérebro como se vinda
ininterruptamente dos teus lábios, que me
perseguem como um cão misterioso.

Foda-se - desculpem-me - mas é a isto que se
chama Amor!


   Martins, Miguel. Cãibra. Amadora: Ediresistência, 2012, pp 31 - 32.
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                                           VII


Assim: namorar-te cheira a relva acabada de cortar
( dirias: "Foleiro. Vou ali atrás cortar os pulsos", e eu
saberia que essa possibilidade não é só pirotecnia).
Assim: ando, na carteira, com uma pequena
fotografia de uma mão e o advérbio de modo
intensamente, colagem por colar que recortaste de
um pacote de açúcar, entre desassossego e
entretém. Assim, também: quero-te tanto que te
quero como és, só tua, do mundo, comigo só nas
margens do papel, e isso parece-me tanto, tudo, um
milagre que tentarei merecer. Ainda: nunca te
magoar, não deixar que te magoem, tentar evitar
que te magoes. Tenho um metro e noventa, cento e
dez quilos, quase uma parede. Frágil (basta uma
pequena sonda para se perceber). Ainda assim,
parede. Se tiveres de investir contra o mundo, não
te contenhas - embate em mim. Marca-me. Como
me marcas de ternura.


   Martins, Miguel. Cãibra. Amadora: Ediresistência Lda., 2012, p 17.
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01/11/13




Os Prémios de Poesia atribuídos este ano pelo PEN Club foram para Hélia Correia e para Manuel de Freitas. Este Prémio, ex-aequo, visa respetivamente os livros A Terceira Miséria e Cólofon. O Júri era constituído por Maria João Cantinho, Manuel Gusmão e Teresa Martins Marques. Excelente escolha esta!!!
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31/10/13

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   A Ilha é mágica e misteriosa, tu sabes, e eu gosto dela assim pura. Ilha - caminho para o oriente. Ilha - Mitologia, magia vibrátil, contagiante, em sua esteira aérea e calorosa, desces-me. Como a luz atravessas-me. Tu que és os ritos, o entreposto e a rota para a Índia, a Arábia Saudita, teu folclore encandeia-me o horizonte. Teus seios geminados eu reparo e não sei mais que fazer, a casa do meio que tu me és espanto só de ouvir-te, e que milagre, que magia nasce das tuas mãos, dos teus poros. Palavra que como o fogo aqueces-me o corpo, irreconheço-te só de navegar-te, mulher, meu pulmão, minha respiração, motor que eu quero impulsionante pelo sangue adentra-me, que é de amar, meu ofício, meu vício, que existo, pátria, Pandora, paquete, palanque meu que podes ser a ideia do moinho ao centro da mó e na esfera à cabeça do Mediterrâneo. Agora entre as mãos e a língua levo-te como uma donzela à passagem iniciática do menstruo, como a doce cantiga embrulhada na fogueira levo-te os genes carregados de bateria e frutos de afecto, ainda aquela memória solar do voo.
 
 
  Timóteo, Adelino. A Arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua, Antologia Poética. Maputo: Revista Literatas, 2013, p. 266.
 
 
Nota 1. - O presente texto de Adelino Timóteo foi tirado do seu livro Viagem à Grécia através da Ilha de Moçambique. Sugiro igualmente o seu Livro mulher, obra já de 2013.
 
Nota 2. - Este poema é o último a ser postado relativo à obra em referência. A presente Antologia teve a Coordenação do poeta moçambicano Amosse Mucavele e contou, no respetivo Conselho Editorial, com os seguintes autores: Abreu Paxe (Angola), Jorge Arrimar (Angola), Victor Oliveira Mateus (Portugal), Mbate Pedro (Moçambique), Cláudio Daniel (Brasil), Rita Dahl (Finlândia), Maria Ângela Carrascalão (Timor-Leste), Conceição Lima (São Tomé e Príncipe), Alberte Momán Noval (Galiza-Espanha), Maria do Sameiro Barroso (Portugal), Frederico Matos Cabral (Guiné-Bissau).
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   " Canto do mar "


Na ruína de espelhos
restam só os teus olhos
onde o meu reflexo é resistente e sólido.

À janela, com insónia das noites
nada a fazer senão aguardar o eco acordado nos lábios
imaginar como uma brisa traz teus seios
- pombos frescos da madrugada.
Perdida a chave vermelha
fiquei, há séculos, preso em tua cadeia
minha alegria na solidão da lua.


    Jingming, Yao. A Arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua, Antologia Poética. Maputo: Revista Literatas, 2013, p 128.
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30/10/13


Há semana e meia saltando de sonhos
para rabiscar umas frases, fixar
um tom, um xis no mapa, a direcção
para o ouro, e às tantas já não
não passo, fico deste lado, murchíssimo
de mãos nos joelhos, a soprar os meus
moinhos, coisas absortas e sonolentas,
livros, papéis, fortificações ridículas.
Apago e acendo a luz, continuo só.

Redijo e enceno as minhas didascálias,
e no abafo da fadiga vejo crescerem
musgos e bolores brilhando
na penumbra. Movimentos no fundo,
ausências cada vez mais familiares. A sombra
deu em doida e escangalha-me os relógios,
alimenta-se das tripas, agoniza
pelos cantos, dorme com o teu vestido.
À cabeceira, enfiado numa caixa de
fósforos, um bicho afina para mim
a melodia do mundo, dá-me corda, um
ritmo, esse nó-corredio que me desce
ao poço. Na caixa, deixo uma nesga
para que olhe comigo o tecto e onde
lhe deito as moscas que me mordem.

Desvio as cortinas, longe ouço vibrar
uma tempestade. Um cão guardando
miragens ladra, alinhando o horizonte,
e anima-me, faz-me descer para a ideia de
andar doce por aí roubando as tardes,
os bolsos cheios de nêsperas e a luz
desassossegando o reino. Mas chove,
a chuva conta cabeças, enche as flores
e deixa-as tombar largando esse perfume
de dilúvio pelos declives açucarados
que levam aos espaços de recreio,
fontes, chafarizes, estátuas segurando
a corda da roupa e da pardalada, junto
com o mobiliário abandonado
de que o jardim se apropriou. Na imensa
sala de visitas, um sofá de pulgas
e um televisor com o ecrã arrancado ao
biqueiro, enquadra um plano soberbo
deste fim de tarde.

Ando mais devagar, encho a rua
de solidão, vejo-a descer, retocando-se -
a noite. Mulata endiabrada soprando beijos
em todas as direcções. Vou atrás, sigo
os meus sonâmbulos. Vamos para os lados
do seja-o-que-deus-quiser.

Não falo, está tudo tão claro, tudo tão
insistentemente banal. Pus baixinho
o coração, frio, a noite inteira a ouvir
dolorosas invocações, uma e outra vez
as mesmas histórias, por favor a um mundo
acabado. Virando as páginas ao jornalzinho
da eternidade, saquei uns versos, o pouco
de realidade e esta sensação de permanência
que nos faz ganhar raízes, ancorar
nestes lugares infectos até ao gole radioso.

O barulho do fósforo rasgou um
suspiro à luz vesga que nos ilustra.
Colagens, cigarros, vastas pausas na moleza
de gestos sem osso, rodando o copo -
pequeno coreto onde dançam para
essas canções redondas que o peito geme,
cansados, trôpegos reflexos. Então,
metem-se-nos ao caminho umas
tipas sem rosto, adivinhando a nossa
sorte, facilitando o azar. Demorou

mas lá saí trazendo pela mão algum delírio,
oferecendo explicações à paisagem,
fundos de ruas malcheirosas, ecos sem saída,
flores aos ombros umas das outras
nesses canteiros onde o que mais bebem
é mijo. Como elas, eu também sou levado
em ombros. Os meus fantasmas todos
cantando. Como explicar o bem, a alegria
de andar pela vida fugido, e agruparmo-nos,
mijando às portas da alvorada.


    Pinto, Diogo Vaz. Bastardo. Lisboa: Averno, 2012, pp 92 - 94.
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29/10/13



“Languages symbolise identities and are used
o signal identities by those who speak them”

M. Byram, 2006

A aprendizagem de uma língua é um processo, para além de cognitivo, também cultural e intrinsecamente ligado às questões de identidade e contexto social, pelo que é interessante analisar brevemente o processo de reconstrução da identidade da RAEM e da sua população após a reintegração do território na China, o seu significado e implicações na expressão que a língua portuguesa tem atualmente no território.

Num interessantíssimo e exaustivo trabalho datado de 2009, “Sovereignty at the Edge: Macau and the Question of Chineseness”, Clayton designa aquilo que aconteceu em Macau como “sort-of sovereignty”, uma espécie de soberania partilhada, única no mundo. Segundo a autora, em meados de 1990, sabendo que em breve mais de quatro séculos de domínio português estavam a chegar a um fim negociado, a administração portuguesa montou uma grande campanha para convencer os residentes de Macau, 95 por cento dos quais chineses, de que podiam reivindicar com orgulho uma identidade que os tornava diferentes de todos os outros chineses: uma identidade resultante dos 450 anos de história não de colonialismo, mas de um tipo de soberania compartilhada, ímpar no mundo moderno. Este projeto exigia uma completa transformação da imagem de Macau como cidade retrógrada, colonial e decadente e da imagem da administração portuguesa como potência colonial corrupta e inepta que presidiu e beneficiou dessa decadência.

Entre os residentes, as reações foram diversas. Alguns consideraram a celebração precoce do estatuto cosmopolita de Macau como uma mudança positiva, diferente da visão habitual de Macau como uma Hong Kong fracassada e de segunda categoria. Outros discordaram com a visão do Estado sobre o que era a “verdadeira” identidade de Macau, mas consideraram que valia a pena questionar o que tornava Macau diferente da restante China. Muitos outros ainda rejeitaram este projeto de “identidade” como uma ficção patética de uma administração colonial moralmente falida.

Por seu turno, Kaeding, investigador da Universidade de Surrey, refere que os dados de um estudo que efetuou mostram que a maioria da população de Macau se identifica etno-culturalmente como chinesa e que a identificação cultural com a China continental é grande, embora seja comummente defendido que a identidade singular de Macau resulta da influência dos quatro séculos de domínio português. Para o autor, “the Portuguese influence on the city’s collective identity in general is largely restricted to the material culture and its architectonical heritage.”

No entanto, a tentativa de convencer os residentes de Macau de que eram diferentes de todos os outros chineses, devido à sua experiência de uma administração estrangeira não colonial, levantou questões prementes: o que era a “soberania”, tal que o passado de Macau podia ser interpretado como não colonial; o que era “chineseness”, em que é que os chineses de Macau eram diferentes, e de intersecção entre elas.

Clayton avança que a resposta a estas perguntas, promovida em museus e publicações patrocinados pelo governo português, definia soberania em termos de supremacia militar, política, económica e cultural. De acordo com esta versão, os portugueses não teriam sido colonizadores porque nunca a tinham detido. Não tinham usado a força para retirar o controlo de Macau aos Ming; a instalação portuguesa fora resultado da negociação e do compromisso. Durante 300 anos, tinham pago o aluguer do terreno às autoridades chinesas em troca da autorização para permanecer na Península de Macau; quando solicitados, forneceram valiosa ajuda militar aos governos Ming e Qing; os seus representantes tinham realizado o kowtow[1] ao imperador e aceitado títulos, um indicador de que tinham sido incorporados na burocracia imperial de Pequim. Durante 300 anos, tinham-se governado apenas a si mesmos, dentro dos muros da cidade, reconhecendo a sua dependência total perante o imperador mesmo para as necessidades mais básicas, como água e comida. De fato, em várias ocasiões, ao primeiro sinal de truculência portuguesa, as autoridades chinesas tinham ordenado a todos os seus súbditos para evacuar a cidade, obrigando os portugueses a submeterem-se pela fome.

Esta argumentação prossegue, defendendo que tal não significa que os portugueses tenham sido meros vassalos do império chinês; a coroa portuguesa agiu como governante supremo do território muitas vezes. Em 1586, por exemplo, o vice-rei de Goa, agindo na suposição de que ele, e não o imperador Ming, tinha jurisdição sobre Macau, elevou o seu estatuto administrativo de povoação a cidade. Em 1846, Lisboa mandou o governador Ferreira do Amaral declarar unilateralmente soberania formal de Portugal em todo o território, recusando-se a reconhecer a autoridade de qualquer oficial de Qing dentro das fronteiras de Macau, e reivindicando a jurisdição sobre a terra e as pessoas (tanto chinesas como portuguesas) muito além dos muros da cidade existente. Em 1887, os oficiais Qing tinham assinado o Tratado de Comércio e Amizade, que reconheceu "a perpétua ocupação e governo de Macau e suas dependências por Portugal". Mas mesmo assim, continua o argumento, quando a reivindicação formal de soberania sobre Macau foi aparentemente reconhecida pelo direito internacional, os portugueses nunca impuseram a sua língua, religião, ideologias políticas ou padrões educacionais ao povo chinês sob a sua administração. Assim, a história da presença portuguesa em Macau foi apresentada como uma soberania partilhada, uma “espécie de soberania”, em que a resposta para a pergunta "quem manda aqui?" foi inteiramente contextual e muitas vezes deliberadamente ambígua.

Tanto esta narrativa histórica como esta concepção da natureza do Estado português não permaneceram incontestadas durante a época de transição. Alguns residentes de Macau definiram colonialismo mais de acordo com o senso comum, simplesmente como qualquer ocupação estrangeira do solo chinês. Apontaram a estrutura do sistema político da cidade, que consistentemente beneficiou os portugueses e os falantes de português, para argumentar que toda a história da presença portuguesa tinha sido de natureza colonial.

Alguns estudiosos sugerem que o período “colonial” tenha começado apenas com a chegada de Ferreira do Amaral, em 1846, quando, influenciado pelo exemplo dos britânicos em Hong Kong, Portugal insistiu que a existência de uma povoação portuguesa autónoma em solo chinês era a evidência da soberania de facto sobre o território. Outros sugeriram que, independentemente da data do seu início, o período colonial terminou em 1966, quando manifestações e boicotes de inspiração maoísta forçaram a administração portuguesa a aceitar uma série de exigências que fizeram de Macau uma zona “semi-libertada”.

Mas houve um debate mais intenso sobre a questão de como o passado de Macau configurou o sentido de “chineseness” dos residentes de Macau. Na narrativa do governo, a “espécie de soberania” tinha feito dos residentes de Macau uma “espécie de chineses” – “chineses latinos”, como lhes chama Roderich Ptak. Essa transculturação evidenciou-se na arquitetura, na cozinha híbrida e no caráter mais tolerante e descontraído da cidade. Durante a época da transição, a pequena comunidade de Macau de moradores etnicamente mistos, conhecida como macaense, tornou-se o símbolo por excelência desse hibridismo: em termos fenotípicos, linguísticos, culinários, religiosos e genéticos, eles eram a expressão máxima do espírito de troca pacífica e generativa entre diversos povos que a administração portuguesa tentou reclamar como legado seu.

A Professora Wai-man Lam, da Universidade de Hong Kong, refere que em contextos pós-coloniais a identidade é uma arena de competição política onde vários discursos que encarnam reapropriação das tradições políticas e legados se cruzam. Na RAEM, a identidade do pós-handover compreende as componentes locais, nacionais e internacionais, com Macau caracterizada como um objeto colonial/cultural/histórico e económico híbrido. Para a autora, a identidade de Macau após 1999 é uma reapropriação da imagem da Macau colonial propagada pela administração portuguesa desde a década de 1980.

Com efeito, em 2011, o presidente do Instituto Cultural de Macau, Guilherme Ung Vai Meng, salientava em conferência de imprensa a propósito da promoção de um mega desfile cultural por ocasião das comemorações do 12o aniversário da RAEM que Macau era “uma cidade de cultura aberta”, “que apresenta uma mestiçagem de características ocidentais e orientais”, patentes “nas construções, gastronomia, hábitos locais, línguas e religião”[2].

A construção da identidade pós-handover alicerçou-se num processo de incorporação e não de repressão ou eliminação do “outro” – a construção de uma identidade nacional autónoma não tem sido a principal tarefa na reconstrução dessa identidade. Em vez disso, várias componentes identitárias foram deliberadamente promovidas e integradas. O sucesso do processo garantiu o relativamente suave reingresso na China e reforçou a legitimidade do novo governo da RAEM.

(a autora escreve segundo o novo acordo ortográfico)

*Investigadora da Universidade Aberta


  Dias, Ana Paula. Macau e as Fronteiras da Identidade. Macau, 2013.
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