29/03/11

Investidura de Carmen Conde na "Real Academia Española de la Lengua",
onde foi a primeira mulher a ter assento.

"Primera noche en la tierra"


Desoladamente
nos ha dejado solos...
No vemos el Jardín de nuestro ocio.
Apagóse del fuego la gran rama,
o Dios se la llevó fuera del aire?

Habrá luna. Él creaba estrellas,
las que en el agua florecían veloces
buscándome los dedos vegetales.
Habrá su sol.
La líquida corola derramándose
encima de las selvas inholladas
que yo caminaré descalza siempre.

Junto al árbol que lleva doce frutos,
dando uno cada mes, nunca hubo noche.
Ni urgencia de la antorcha ni la brasa.
Dios lo alumbra todo! Hizo astros
para nosotros en destierro de sus síes.

Tibias sombras apaciguan las memorias.
Frior de soledad. Ven a mi pecho,
que yo seré tu tierno prado tibio,
y seguro soñaras en mi corteza.

Allá no ululan lobos. Allí lamian dulces
mis pies sobre tomillos aceitosos.
Aquí se encienden ojos y dientes amenazan
modernos calcañares desgarrados.

Ladran los chacales. Oh las hienas
que lúgubres husmean nuestro sueño!
Toma el paraíso de mi cuerpo:
mis labios son de ascua, mis hogeras
serán lo unico vivo de la noche.

Más fuerte que el amor no será el cierzo.
Más dura que tu pecho no es la sombra.
Defiéndete de mí, estoy buscando
olvido de las selvas que no huelo.

Noche, cueva negra de la tierra!
Vamos a bebérnosla de un trago
que deje descubiertas las auroras.

 Carmen Conde in "Mujer sin Edén", Ediciones Torremozas, Madrid, 2007, pp 37 - 38.
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26/03/11

A poesia de Cecília Meireles na voz de ...

" aos poucos/ rasgo o espelho da memória. "

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aos poucos
rasgo o espelho da memória.
redesenhando novos traços
esculpidos em voo livre
sob a estrela que roubei
num olhar moribundo.

aos poucos
enterro o coração de papel.
esmagando na poeira do vento
as palavras negadas.

Ana Barros ( Inédito)
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24/03/11

" sem qualquer palavra/ não recordaremos/ o que nos pesava, "

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"Flautim "

Guardaremos juntos
os acertos, breves,
os enganos, fundos,

e aquele remoto
amparar de parcos,
altivos escolhos.

Cairão o signo
e a secreta cinza
desse ardente enigma.

Não lamentaremos
mais que o desencontro
dos humanos termos,

a rápida marca
que o passado imprime
na face, na máscara,

e os puros despojos
que às vezes são versos
e sempre são ossos.

Não diremos nada
dos velhos desejos
que a memória abraça,

sem qualquer palavra
não recordaremos
o que nos pesava,

mas apenas isso
que nos pese ainda:
ter vindo, ter sido.

Bruno Tolentino in " anulação & outros reparos", Topbooks Editora,
Rio de Janeiro, 1998, pp 48 - 49.
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"La mie rue"


Na rue adonde camino,
ls passos son debagarosos, cçumpassados, témbran ls caiatos.
Na rue adonde camino,
sóbran ls sentalhos adonde las andorinas póusan i cáien
sous cagados.

Na mie rue hai ua fuonte
que cuorre andefrente, quaije an silenço, solo para eillha;
las barrilas scachórun-se i eilha, cun sues scaleiras de piedra,
cuntina a cumprir sue funçon, mas bai morrendo de solidon.

Na mie rue las piedras scáldan,
ten-te nun caias, son a pies.
La rue adonde you joguei al chete, a las palombas,
i me ampuntaba al toque de las Trindades, stá marimunda,
xorda de giente.

l you
camino cun pies firmes na mie rue,
acenhando als sentalhos muita beç scundidos atrás la
parreira de uba rei,
rebelando retratos de an tiempos.

Camino, pie firme anté un die
an que las piedras de la rue nun me dígan adonde stan
i you,
ten-te nun caias, caminarei para outra rue que nun la mie...

Adelaide Monteiro in " Antre Monas l Sbolácios", Zéfiro, Sintra, 2010, p 33.
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23/03/11

" Compraste o meu amor/ Com o vinho dos antigos "

Paula Tavares, Silvya Montarroyos e Victor Oliveira Mateus
na Universidade Clássica de Lisboa no dia 21 de Março de 2011.
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Compraste o meu amor
Com o vinho dos antigos
Sedas da Índia
anéis de vidro

Sou tua, meu senhor
À segunda, terça, quarta, quinta, sexta-feira
E também preparo funje aos sábados
Não não me peças o domingo
Todos os deuses descansam
E sei também das concubinas
O horário de serviço

Paula Tavares in "Como veias finas na terra", Editorial Caminho, Alfragide, 2010, p 35.
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22/03/11


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Amor, lo stato tuo è proprio quale
è una ruota, che mai sempre gira,
e chi v'è suso or canta ed or sospira,
e senza mai fermarsi or scende or sale.
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Or ti chiama fedele, or disleale;
or fa pace con teco, ed or s'adira;
ora ti si dà in prenda, or si ritira;
or nel ben teme, ed or spera nel male;
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or s'alza al cielo, or cade ne l'inferno;
or è lunge dal lido, or giunge in porto;
or trema a mezza state, or suda il verno.
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Oi, lassa me, nel mio maggior conforto
sono assalita d'un sospetto interno,
che mi tien sempre il cor fra vivo e morto.
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Gaspara Stampa in "Tres poetisas italianas del Renacimiento", Ediciones Hiperión,
Madrid, 1988, p 86.
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21/03/11

" (...) O teu delito/ não é grave: é teres-me um pouco olvidado."


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"Carta"
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Mando-te, amigo, dois poemas que são
as últimas palavras de alguém sobre a terra,
ligadas a um fio que a guerra romper
não pode, nem juvenil o teu delito.
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Se te agradou, para nós dactiloscrito
sonho mediterrânico, aquele azulado
folheto que como dom
te deixava partindo, hoje tu, que és bom,
junta-os aos que são para Telémaco. Em breve,
espero, de novo nos veremos. O teu delito
não é grave: é teres-me um pouco olvidado.
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Umberto Saba in "Poesia", Assírio & Alvim, Lisboa, 2010, p 371
(selecção, tradução e introdução de José Manuel de Vasconcelos).
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20/03/11

Lançamento do livro "A incidência da luz" na Biblioteca Municipal de Cascais.




Esta foto andava no "Face", creio
que é da autoria da Teresa Bonito
... eu continuo a pensar que estou
com ar de "pai irado"... e logo de
dedo erguido, enfim, é o chamado
momento infeliz :))

Na mesa: João Artur Pinto, Graça Pires, Alice Macedo Campos, Victor Oliveira Mateus
e Isabel Mendes Ferreira.

19/03/11


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Refazemos o tempo nocturno no mais escondido olhar
para que ninguém veja os passos em falso
com que trilhamos o destino.
Olhamos o carvão apagado, como se fosse possível
encontrar a noite debaixo da trempe
onde, no tempo antigo, se poisavam as panelas
e se procurava a promessa de um lugar à mesa.

Contra o silêncio lemos a meia voz: ponham laços
de crepe nos pescoços das pombas da cidade.
Que os polícias de trânsito usem luvas pretas
de algodão. Voltamos a ler e as palavras de Auden
ecoam como um requiem pelos sonhos
profanados em mãos funestas.
Depois não sabemos como evitar o luto,
ou a culpa, ou a solidão.

Graça Pires in "A incidência da luz", Editora Labirinto, Fafe, 2011, p 13.
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Presa às marés, outras margens me circundam.
Procuro os teus braços.
Esgota-se em cada dia, lentamente,
a viagem do tempo que expõe a rigorosa
proa no vértice dos dias.
A densidade do sal partiu-me os remos
e entranhou-se-me nas veias como um tormento.
Tenho um barco parado a obstruir-me os lábios
colados à rugosidade dos mastros.
Procuro o teu rosto.

Graça Pires in " A incidência da luz, Editora Labirinto, Fafe, 2011, p 33.
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18/03/11

Postado hoje...

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ACABOU DE SER POSTADO NA "REVISTA (ONLINE) TEXTUALINO"
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UM ARTIGO MEU SOBRE O ÚLTIMO LIVRO DE INEZ ANDRADE PAES.
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( Para aceder à Revista clicar sobre o seu nome no lado direito deste sítio)
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11/03/11

DIA MUNDIAL DA POESIA NA UNIVERSIDADE CLÁSSICA DE LISBOA

Clicar em cima da imagem!
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DIA 21 DE MARÇO DE 2011, 18h30, NO ÁTRIO DA BIBLIOTECA DA FACULDADE
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DE LETRAS DA UNIVERSIDADE DE LISBOA, TRÊS AUTORES FALARÃO DA
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SUA OBRA E LERÃO ALGUNS POEMAS SEUS:
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PAULA TAVARES ( ANGOLA )
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SYLVIA MONTARROYOS ( BRASIL )
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VICTOR OLIVEIRA MATEUS ( PORTUGAL )
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( Entrada Livre !!!)
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10/03/11

" P'ra ti guardei/ Coisas simples como estar à espera "


Flor de farinha/ fêmea de gado miúdo/
/oferta queimada/ no altar do mundo
(palavras de Juliana enquanto amassava o pão)
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Quantas coisas do amor
P'ra ti guardei
Coisas simples como estar à espera
Manter o pão quente
Deixar o vinho abrir-se
Em mil sabores
Guardei-me das tentações
das sombras do desejo
das vozes
dos segredos
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seria muito pedir-te
que me veles o sono
só mais uma vez.
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Paula Tavares in "Como Veias Finas na Terra", Editorial Caminho,
Alfragide, 2010, p 18.
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09/03/11

"... um andar de quem não toca no chão. "

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" DO SILÊNCIO E DO OLHAR "
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Vincava os passos nas lajes com a precisão de um tambor antes da batalha. A ansiedade dos tacões ecoava corredor afora, batia nas paredes, nas janelas, nos quadros. Por vezes, lá ao fundo, a porta de um dos quartos abria-se e saía a criada velha com uma bacia, com toalhas ou qualquer outra coisa cujo significado ela bem conhecia. Ao fim de algum tempo os gritos tornaram-se mais estridentes e ouviu-se um chorar de recém-nascido. Minha avó precipitou-se para o quarto mas a criada velha interceptou-a a meio caminho: "Minha senhora, é um menino, é um menino!" Gritava feliz. Minha avó estacou: o corpo fremente, a raiva a apoderar-se dela, o rosto vermelho, muito vermelho: "Um rapaz?!... Raios! E parece que vem mal disposto, só agora chegou e já está aos berros." Deu meia-volta e começou a subir para o primeiro piso, mas, a meio da escadaria, ainda se voltou para trás tornando a coisa mais clara, não só para as duas criadas, como para a parteira que, entretanto, tinha surgido na ombreira: " E fiquem sabendo nesta capoeira nunca nenhum galo há-de cantar!". Fechou-se no seu quarto de onde não desceu durante dois dias.
Alguns meses andou ela contornando a minha transparência. Macho naquela casa nunca teria a vida facilitada. O marido da minha tia mais velha raramente emitia uma palavra e, por razões de maior eficácia, decidira mesmo começar a ensurdecer. O meu tio Licínio, irmão de minha mãe, fazia aparições meteóricas: o seu Morris preto, CE- qualquer coisa - qualquer coisa, o fato impecavelmente engomado, gravata a condizer, o cheiro gorduroso da brilhantina, os sapatos de verniz. Licínio dormia lá algumas vezes, mas noutras só Deus sabia - sabia Deus e a minha avó, que o mandara espiar até apanhar o busílis. Quanto ao meu pai, deve ter sido o caso mais complicado: apareceu, certo dia, no salão grande, para o pedido formal de noivado: " Sra. Dna. Lucinda - gaguejou ele - venho pedir-lhe a mão de sua filha. " Ela fulminou-o com o olhar, e, com toda a gente perfilada atrás dela, perguntou: " Qual filha? Tenho três!". "Desculpe, Sra. Dna. Lucinda, mas uma já está casada.", ela pigarreou: " Eu sei que uma está casada, por isso é que disse três... Uma mãe sabe estas coisas. Fareja-as." O meu pai corou. O meu tio Licínio, envergonhado, escondeu-se imediatamente atrás da minha mãe e da irmã mais nova. " É da Leonor, minha senhora... é com ela que eu gostava de namorar", "Ora muito bem, assim é que as coisas são claras, só espero que seja para ir avante, pois, como deve saber, eu não gosto de si. Pode, sim senhor, começar a namorar! Nada de falar à porta nem à janela, o senhor namora cá em casa, às quartas e sextas-feiras, das quatro às cinco da tarde". E foi assim que apareci eu, o indesejado.
No entanto, um volte-face ocorreria deveria eu ter uns quatro meses. A minha mãe, entrando no quarto, deu com a minha avó frente à minha camita a persignar-se: "Que foi, mãe?", perguntou assustada. " Ai, rapariga, já viste bem os olhos do teu filho?", " Que têm os olhos do meu filho?", " Ai, Leonor Maria, são os olhos do teu pai!", " Ó, mãe, deixe-se dessas coisas eu já tinha visto que o Pedro é parecido com o avô, mas isso é normal, as crianças parecem-se sempre com alguém da família. " A minha avó ficou muito tempo em silêncio. Pegou-me ao colo pela primeira vez: " Não, Leonor Maria, eu sei o que estou a dizer, este menino tem qualquer coisa no olhar." A minha avó beijou-me o pescoço, apossou-se de mim e eu passei a dormir no piso de cima.
Nas primeiras recordações que conservo ela usava já uma bengala, com um belíssimo castão em prata, usava também uma mantilha de seda preta, que depois cruzava debaixo do queixo atirando as pontas para as costas. Mantinha ainda uma pose altiva apesar da indisfarçável ruína em que a família havia caído. Minha avó retirara-se para o sótão, mas sem nunca me largar. Naquele espaço os meus olhos alargaram-se ainda mais, bebiam tudo o que ela me contava: a sua amizade com a condessa de T., as suas disputas com o Dr. Aquiles, primeiro por causa do olival, depois por causa do outro terreno, aquele lá do fundo, onde estivera um poço e um moinho. Mostrava-me revistas muito antigas, fotos desirmanadas; tecia loas aos dois últimos reis, enquanto cuspinhava na Primeira República: " Uns bárbaros, tudo maçons, tudo maçons... uma pessoa saía de casa, mas já não sabia se entrava e o teu avô... houve um dia em que não voltou, foi apanhado por uma bala, no Rossio. Era um homem tão bonito... tinha os teus olhos, o teu modo de falar... um andar de quem não toca no chão. Ah, quando se conhece um homem assim, nunca mais se pode ver outro! Mas tu... tu também olhas para nós, mas o que vês é outra coisa " Eu ouvi-a, quase religiosamente, até aos meus dezasseis anos, arregalava os olhos, via o que ela me contava como se tudo se estivesse desenrolando à minha frente. " Tu achas que a avó está a ficar louca?", " Não vó, acho que é a sua alma que está a ficar cansada!" Ela fixou o tecto para esconder qualquer coisa, ajeitou a mantilha, com as mãos trémulas alisou também o amarrotado da saia sempre a arrojar o chão, e, num sussurro antes de adormecer, ainda deixou sair: " Vieste em altura má. Gastou-se tudo. Vão ser precisas décadas para voltar a subir e eu já não tenho freio nesta gente... Protege-te dos teus tios, dos teus primos, eles nunca te irão perdoar o teres-me mudado, nunca te irão perdoar teres sido o preferido... mas... tu já és um homem... e depois tens esses olhos... têm um dom, mas esse segredo é só nosso... "
- Sabe, doutora, ela viria a morrer dois anos depois?
- Voltaram a conversar?
- Não. A família desmembrou-se e...
- Como define, então, o que todos esses familiares sentiam por si? Sempre se sentiu inseguro com eles, não foi? - Fez-se um clique dentro de mim. Lá fora os plátanos ondulavam mansamente. O ruído dos carros, apesar de logo abaixo, apareciam-me como coisa longínqua, as vozes da sala de espera chegavam-me como ressonâncias num túnel que, aos poucos, se me ia abrindo. E de novo a voz da Cidália:
- Os seus pais nunca foram suficientemente fortes para o proteger contra esse exército de ódio, não é Pedro? - Sorri. Olhei de novo os plátanos, agora acalmados. A estátua com uma ponta de baioneta e a águia a querer voar.
- Já percebi para onde a doutora me está a querer empurrar, aliás, comigo o amor sempre começou pelos olhos, com uns começas pelos seios, com outros pelas coxas, com outros ainda pelas nádegas, comigo é pelos olhos. Sim, acho que já percebi! Do olhar receoso e vigilante à sua sedução...
- Eu sei que percebeu, o Pedro é um homem inteligente. Só lhe peço uma coisa.
- O quê?
- Essa capacidade que ambos descobrimos que tem, nunca a use sozinho consigo.
- Qual capacidade?
- De hipnotizar. Até mesmo de se auto-hipnotizar... Se fizer isso sozinho pode ser perigoso.
Despedimo-nos. Uma vez cá fora olhei a tarde, o turbilhão da cidade, o mundo. No café da esquina uma bica retemperou-me o ânimo, enquanto o espelho em frente, como de costume, me ia devolvendo tudo o que nunca fora, tudo o que nunca fora mas com um vasto leque de possíveis no seu centro, apesar de tudo.
- Que tens? estiveste a chorar? - Perguntou-me a imagem do espelho.
- Não. Porquê?
- Não sei! Estás com uns olhos estranhos.
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Victor Oliveira Mateus (Pré-publicação. Conto para uma Antologia cuja temática é a infância)
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07/03/11

Foi notícia...


A ANTOLOGIA "O PRISMA DAS MUITAS CORES" JÁ PUBLICITADA, ATRAVÉS DA CAPA
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E/OU DE POEMAS, EM BLOGUES MUITO VISITADOS COMO OS DE: SILVYA BEIRUTE,
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MANUEL A. DOMINGOS, RICARDO DOMENECK, HENRIQUE MANUEL BENTO FIALHO,
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ANTÓNIO MIRANDA, QUE DELA FEZ UMA CRÍTICA FAVORÁVEL ( E SEGURAMENTE DE
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OUTROS A QUEM PEÇO DESCULPA POR NÃO TER VISTO), APARECE TAMBÉM AGORA
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NOTICIADA NA REVISTA "OS MEUS LIVROS", Nº 96 MARÇO 2011, ATRAVÉS DE UM
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TEXTO DE JOÃO MORALES, DIRECTOR DESTA MESMA PUBLICAÇÃO.
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(Clicar sobre a imagem!)
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06/03/11

Está já online ...


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ESTÁ ONLINE A "REVISTA TEXTUALINO "! INICIA-SE, PARA JÁ, COM OS SEGUINTES
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COLABORADORES ( POR ORDEM ALFABÉTICA):
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CARLOS VAZ
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CATARINA NUNES E VAZ
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DINIS MOTA
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MARIA AUGUSTA SILVA
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MÁRIO BRUNO CRUZ
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MARIA DO SAMEIRO BARROSO
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PEDRO COSTA
.
PEDRO FOYOS
.
REGINA GOUVEIA
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VICTOR OLIVEIRA MATEUS
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( Nota - no que me diz respeito penso escrever sobretudo acerca dos livros que vou lendo e do
cinema que vou vendo.)
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05/03/11

"desço para encontrar nos escombros/ uma faixa de terra/ para alimentar o segredo."


a luz atravessa o sangue, a memória.
mastiga este canto na cidade.
o incêndio devasta o interior da porta.
fragmenta estes olhos, entre o friso e a fogueira.
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a melodia prende a angústia e o mistério.
prendo no olhar as mãos que apagam
a melodia desta chuva.
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devagar, leio o sangue e a saliva
correndo ao canto da boca.
o livro rasga a língua, a garganta -
o canto (dos lábios) nos intervalos do silêncio.
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o frio, dizes, transmite à nascente
um pouco de morte, a nascente
deixa cair sobre nós esse incêndio.
o lume avança. enruga a pele,
queima os cabelos, os ossos - a alma.
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escrevo sobre o areal.
desço para encontrar nos escombros
uma faixa de terra
para alimentar o segredo.
nada vislumbro.
desfaço o teu corpo
.
em ruínas
a noite prevalece.
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Ruy Ventura in "Chave de ignição", Editora Labirinto, Fafe, 2009, p 20.
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04/03/11

" Devir e Mesmidade na Poesia de Dora Ferreira da Silva "

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Por que te esquivas
de contemplar o mesmo no diverso
e saltas o decisivo verso
que nos une?
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Dora Ferreira da Silva, A um poeta
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Instalada num território de exuberantes metáforas, num lirismo intimamente articulado com uma assumida visão do Ser e numa abrangente posição relativa ao sagrado, a poesia de Dora Ferreira da Silva escapa aos tradicionais, e espartilhadores, processos de rotulagem: multipolar e policêntrica esta obra assemelha-se antes a um enorme retábulo cuja inteligibilidade dinâmica nos envia incessantemente do Todo para as Partes e destas para aquele. Assim, não é de estranhar que este primeiro tópico seja logo detectável na recorrência com que a poeta utiliza todo um léxico bastante específico: fiandeira (PR 45 e 269), tecelã, tear, tecer, novelo, urdidura (PR 51 - 59), tranças (PR 68), cordame (PR 87), tranças desnastradas (Hd 35), Liames atando desatando (Hd 57), (CI 50), renda (CI 28)... Este é apenas um dos possíveis pontos de partida para o universo sincrético e mágico a partir do qual Dora Ferreira da Silva insiste a sua Voz Poética. Intimamente ligado a este devir formal e conceptual encontramos igualmente o modo como a autora se relaciona com toda uma Lógica da Identidade - ora a infringe ostensivamente: "(...) É palavra meu açoite/ minha dor minha alegria/ com ordem sem ordem se alinha/ pouco sóbria algo ébria" (CI 9); ora clarifica com expressões e adjectivos opositivos: "próximas-distantes," (CI 37), "fala da alma que me desabita" (PR 41); ora ainda introduzindo disjunções de tipo hipotético: "Sei que me escutas/ (ou és tu quem me falas?)" (CI 88). Mas o movimento, dentro deste universo poemático, possui igualmente feições bem mais ortodoxas - a brandura: "Esse tempo que passa como um vento brando" (PR 41); a nostalgia: "O que passou, passou. Fiquei testemunhando/ esse caminho sem ti... " (PR 79); o fascínio: "Espio as garças minuciosamente:/ sua escrita me fascina" (PR 279), etc. Este devir que atravessa de um lado ao outro a poesia de Dora Ferreira da Silva, não é o gratuito movimento pelo movimento, uma fibrilação arbitrária que a si se basta, é antes a expressão de uma visão animista do cosmos onde a reflexão e a emoção se conjugam para dizer o que à palavra vem: "(...) As estátuas e as fontes/ te acenam. Em vão/ chamam-te as flores..." (PR 70), "sermos dois e isolados/ flutuando na alma do mundo" (CI 16). A todas estas características do devir, outras se poderiam ainda acrescentar - transfigurações, metamorfoses: "As formas primeiras por belas e dementes/ esperam seu resgate (...)/ essas duras crisálidas do sono" (PR 61), contudo, o que nos importa por fim assinalar é que toda esta actividade se encontra subsumida numa figuração englobante - a do ciclo, tantas vezes identificado como círculo: "Tudo que foi luz/ e hoje desmaia em treva// renasce deste silêncio de orfandade" (PR 40), "deslocam-se os ponteiros/ cerrando o cerco do tempo." (PR 82), "dançam pétalas/ dança a vida (...)/ não termina a partitura/ que se repete/ sempre." (PR 270).
Simultaneamente Estrangeira e integrada no mundo sensível (vários são os seus poemas versando aspectos do quotidiano, alguns até com minuciosas descrições) Dora Ferreira da Silva atende ao que ocorre, não só naquilo que a cerca, mas também no si-própria, e assim, sob os auspícios da Beleza e do Amor para sempre insiste nesse seu Jardim que vai construindo e de que nunca desarma, ou melhor, nessa realidade estruturalmente hierofânica onde o sagrado irrompe a cada passo do seu olhar e da sua escrita, aliás, ao falarmos de sincretismo, de uma certa transgressão da Lógica da Identidade, de devir cíclico e de hierofânias estávamos de facto já a apontar para a circunstância de nos encontrarmos ante uma poesia alicerçada num solo eminentemente mítico. Se o Mito se actualiza sempre através de Ritos que trazem para o presente os seus deuses e/ou os seus heróis, também na poesia de Dora o ciclo se perfaz, quer entrando na própria estrutura da estória sagrada: "(...) Bebia Narciso sobre a onda/ quando uma face viu de tal beleza" (Hd 39), quer falando do quotidiano à lupa do Mito: "Osíris - Menino brincando na calçada/ e Osíris se chamava. Amei o nome" (CI 42), quer ainda cismando nas suas inquietações e desejos através de imagens míticas: "Partiram-se as finas cascas de ovos/ e o Sol resplandeceu." (PR 63), estes dois últimos versos fazem-nos mesmo pensar que a poeta conhecia alguns Mitos do norte da Europa, nomeadamente da Mitologia ugro-finlandesa. Assim como as vivências de carácter animistico-mágico e todo o tipo de ritualismo, nas sociedades ditas primitivas, jamais punham em causa a História Sagrada Originária ou os Mitos secundários, nem tão pouco a normatividade decorrente de todos eles, também em Dora Ferreira da Silva a Mesmidade dos planetas e da natureza ( cf. Hd 48), bem como do real enquanto Todo, jamais vacila apesar do constante devir a que está sujeita: "A Vida, sem marcos divisórios./ Um território geral além do provisório aqui ali,/ o mais e o menos, o entornado Amor brindando o espaço, taça cheia." (PR 106), "Já não sou eu quem diz, nem ouve e escreve,/ nem nossa é a dança alada/ subindo o teto da manhã:/ no alto vértice/ o Único a colhe/ e dá sentido à ação" (PR 106), "Quando a plenitude do/ UNO?/ simples inefável resumo." (CI 16). Pela ideia (ou conceito?) de Uno, que em Dora aparece por vezes com outras formulações, e que se lhe apresenta - apesar da sua Mesmidade - ao olhar e à escrita sob as formas mais diversas, a poeta escapa definitivamente a um ecletismo heteróclito, onde também assomam as marcas do cristianismo e de autores como Plotino, e instala-se definitivamente no território consagrado da Grécia Antiga, na quietude desse seu Jardim pejado de hierofânias onde "O muito transforma-se em unidade" (CI 121).
O apelo da Hélade fez-se também sentir na poesia portuguesa do século XX. Tomemos como exemplo apenas duas das grandes mulheres-poetas desse século. Na poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen se o ponto de partida aparece como semelhante ao de Dora: "Mas dar a minha voz à veemência das coisas/ E fazer do mundo exterior substância da minha da minha mente" (BC 8), se no poeta nada deve separar "o homem do vivido" (BC 14) e se aparecem mesmo, nalguns casos, temas comuns (Os pássaros, Penélope, os deuses, Delphos, etc.), o que é um facto é que o límpido solo grego de que Sophia nos fala não é um solo visto através de um qualquer paradigma sincrético-mítico, estamos ante uma observadora envolvida com o objecto da observação mas jamais integrada, ou fundida, no mesmo: os deuses de Sophia não estão ali à beira-mão, eles "Nasceram como um fruto da paisagem" (A 46) e "Extasiados estão na sua imagem" (Idem), "A respiração dos deuses é visível" (G 66), pode ser vista no Golfo de Corinto ou em qualquer outro local da Grécia, mas há sempre um hiato entre eles e a poeta, quando muito poder-se-á falar de uma união (e batalha) entre sangues divino e humano (cf. G 66), mas isso não passa de uma alegoria de uma viajante "Em redor das montanhas e das ilhas" (Idem). Há até momentos em que a poeta é mesmo mais peremptória: "Exilámos os deuses e fomos/ Exilados da nossa inteireza" (OP 220), dito por outras palavras, a filiação desta poesia à Grécia enquadra-se no seio de um pensamento estritamente racional, embora nalguns poemas, por exemplo em "O Búzio de Cós", se utilize mais o verbo cismar. Atinge-se, por conseguinte, uma consequência paradoxal: a Beleza que Dora Ferreira da Silva alcança com o seu entrançado poético consegue-a igualmente Sophia de Mello Breyner pelo caminho inverso: o seu deslizar brando pelas águas, as suas praias fulvas e solares, o seu olhar minucioso e sereno, (olhar esse que faz dela uma das maiores poetas portuguesas), ou seja, mais uma vez o Mesmo a dizer-se nas suas múltiplas formas.
Ao deslizar brando e luminoso das poéticas anteriores opõe-se o entusiasmo - por vezes mesmo: o arrebatamento -, a amplidão e o cheio da poesia de Natália Correia. Não tendo feito da Grécia Antiga um dos seus temas dominantes a ela recorreu inúmeras vezes na sua escrita, e com Dora Ferreira da Silva partilha mesmo alguns títulos: a alusão à cidade de Patmos, as Estátuas, etc. Mas o que nos parece aqui fundamental é a contraposição existente entre Dora e Natália quanto ao postulado de que partem as suas escritas: a primeira instala-se no paradigma mítico, para, através dele elevar (e consagrar) esses aspectos do real circundante que do Uno foram emanando; a segunda, que com Sophia partilha o olhar da ocidental assumidamente estabelecida nas concepções epistemológicas e ônticas do seu século, parte para a Hélade para a colocar ao serviço das vivências e inquietações da contemporaneidade: "Para que no alarme dos sinos/ um pouco de Grécia repique/ no poço mais europeu do meu crânio/ procuro Atenas e sai Munique" (SN 33), "Ó Pítia adrede nascida/ nessa ilha que é tripeça,/ porque sendo Margarida/ teu nome no mar começa." (SN 134). Alguns poemas de Natália Correia parecem, contudo, inseridos em plena Antiguidade nomeadamente "Afrodite Ressurrecta" e "Invocação", mas tal se deve apenas ao saber poético - e até a uma certa ironia - da autora, veja-se, por exemplo, alguns versos do primeiro texto: "A de leite colmada. De amor, a mama cheia./(...)/ troca luas malignas por honestos lavores." (SN 172).
A originalidade da poesia de Dora Ferreira da Silva se, por um lado, apresenta acidentais similitudes com outras poetas, por outro, não lhe outorgou epígonos nem um generalizado reconhecimento no espaço lusófono. No entanto, convém estar atento a algumas convergências com vários poetas brasileiros, como é o caso de Mariana Ianelli no seu último livro: Treva Alvorada. Observe-se o carácter antitético do título, descubra-se igualmente na obra a constante inquietude (e maravilha) com o sagrado e com o mítico, sobretudo nas figuras de Narciso e Hércules. Mariana Ianelli, uma das mais significativas vozes poéticas da sua geração, compartilha também com Dora Ferreira da Silva o desinteresse em afinar a Voz poética pela batuta de circunstancialismos modais - a autenticidade da Palavra que se abre à escuta do poeta não faz cedências aos turvos resplendores das épocas. Acrescente-se que o ciclo doriano não está só presente no título da obra de Mariana, ele percorre todo este seu livro sob a forma de vida/morte/renascimento: "E se te chamam,/ Se te chamam ainda,/ Que seja maior o teu longe,/ Mais largo o teu giro.// (...) No parto do teu espírito." (TA 82). Talvez Dora Ferreira da Silva não tenha deixado seguidores directos - no sentido escolástico do termo -, para que, na inapreensível estratégia do Devir, a Mesmidade do seu dizer encontrasse outros veios, outras portas, outros modos de ressurgir.
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(Nota - às citações seguem-se, em maiúsculas, as iniciais dos títulos das obras com o número da respectiva página.)
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Bibliografia
-Andresen, Sophia de Mello Breyner, O Búzio de Cós e outros poemas, Editorial Caminho, Lisboa, 1977.
-Andresen, Sophia de Mello Breyner, Geografia, Edições Ática, Lisboa, 2ª edição.
-Andresen, Sophia de Mello Breyner, Antologia, Moraes Editores, Lisboa, 1975.
-Andresen, Sophia de Mello Breyner, Obra Poética - Vol. III, Editorial Caminho, s/c, 1999.
-Correia, Natália, O Sol nas Noites e o Luar nos Dias II, Projornal, s/c, 1993.
-Ianelli, Mariana, Treva Alvorada, Editora Iluminuras, São Paulo, 2010.
-Silva, Dora Ferreira da, Cartografia do Imaginário, T.A. Queiroz Editor, São Paulo, 2003.
-Silva, Dora Ferreira da, Hídrias, Odysseus Editora Lda., São Paulo, 2004.
-Silva, Dora Ferreira da, Poesia Reunida, Topbooks Editora, Rio de Janeiro, 1999.
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Victor Oliveira Mateus in "Revista TriploV de Artes, Religiões e Ciências",
Nova Série, 2011, Número 14.
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03/03/11

a regra e as excepções...


Nota - A minha posição em relação ao palavrão vem sendo a mesma há já alguns anos, assim, sou contra o seu uso como forma de exibição gratuita, mas defendo-o como necessário se traduz um dado contexto socio-cultural e/ou dados estados emocionais. O conto que se segue publiquei-o em 2006... já nem me lembrava dele. Não deve ser lido por quem não gosta de palavrões em literatura!!! Pessoalmente deu-me muito prazer escreve-lo, imaginava-me sempre dentro de um filme do neo-realismo italiano... Se virmos bem, também faz pensar, aliás, nessa altura alguém me escreveu: "agora já ele é um senhor respeitável em Genebra". Juro que essa pessoa escreveu Genebra (ainda tenho aí o mail) e não Cabo Verde!
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"O Atrasadinho"
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Tudo por causa do raio dos olhos, parados, quase mortos. E eu ainda os abro mais, como se não visse. Autismo, disseram os médicos. O gajo é mas é atrasado! Decretaram os meus irmãos do alto da sua experiência. E assim fiquei: quase inexistente. O meu pai aproveitou-se: punha tudo em meu nome e olhava de soslaio para os meus irmãos. Malandros!, rosnava. Olha, filho, está tudo aqui! E apontava para uma caixa azul enterrada no quintal: os extractos, as aplicações. O pai assim fica descansado, acrescentava, como és atrasadinho. O meu irmão mais velho pirou-se cedo: comeu a filha do Hermenegildo e este apareceu aí com uma de canos serrados... Foi uma tourada aqui na rua! Pronto, casou! O mais novo atirou-se ao marido da Isilda do 2º Dto., um que era polícia, daqueles que dão porrada na malta. O maricão ainda apareceu aí com um olho negro. Mas a coisa deve ter mudado, porque depois encontrei-lhe uma coleira na cama. É do cão, disse o sacana. Qual cão?! Pensa que sou atrasadinho ou quê? Nós nem temos cão. E as algemas de que o polícia se esqueceu cá? Se calhar também são do cão. Quando o meu pai marou apareceram todos. Olha lá, perguntava-me o mais velho, sabes onde está a papelada? Eu abria os meus olhos azuis e babava-me. Não vês que é atrasadinho? Impunha-se a minha cunhada. O cabrão do mais novo é mais vivaço: como não me pôde roubar a mim, roubou o marido à Isilda. Essa puta agora não me larga: sabes p'ra onde é que eles foram? Eu abro os meus olhos azuis e deito a língua de fora. Ele é atrasadinho! Insiste a minha cunhada. Qual atrasadinho, qual merda, ele sabe é mais do que nós todos juntos!... Saíram agora as duas. Foram ao Super. Bem, também vou! As transferências já estão feitas e a casa de Genebra à espera. O avião é às oito. Não me posso atrasar! É que isto de ser sempre atrasadinho também cansa.
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Victor Oliveira Mateus in "Revista (online) Minguante", Nº 2 Outubro 2006, subordinada ao tema: "o azul".
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02/03/11

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Se per serbar la notte il vivo ardore
dei carboni da noi la sera accensi
nel legno incenerito, arso, conviensi
coprirgli sì che non si mostrin fuore;

quanto più si conviene a tutte l'ore
chiudere in modo d'ogn' intorno i sensi,
che sian ministri a serbar vivi e intensi
i bei spirti divini entro del core?

Se s' apre in questa fredda notte oscura
per noi la porta all' inimico vento,
le scintille del cor dureran poco.

Ordinar ne convien con sottil cura
il senso, onde non sia dell' alma spento
per le insidie di fuor l' interno foco.

Vittoria Colonna in "Tres poetisas del Renacimiento", Ediciones Hiperión, Madrid,
1988, p 34.
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01/03/11

" E qual ombro, & qual arte,/ Pode os tendões do cor vergar-te?"

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"O Tigre"
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Tigre Tigre, brilho em brasa,
Que a floresta à noite abrasa:
Que olho eterno ou mão podia,
Traçar-te a fera simetria?
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Em que longe lerna ou céus,
Arde o fogo de olhos teus?
Em que asas ousa ele ir?
Que mão ousa o fogo asir?
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E qual ombro, & qual arte,
Pode os tendões do cor vergar-te?
Quando a bater teu cor se pôs,
Que atroz mão? que pé atroz?
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Qual martelo? qual o grilho,
Foi teu cér'bro em que fornilho?
Que bigorna? que atra garra,
Teu mortal terror amarra!
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Quando estrelas dardejam
E com seu pranto os céus molharam:
Sorriu vendo o feito o obreiro?
Quem fez a ti fez o Cordeiro?
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Tigre Tigre brilho em brasa,
Que a floresta à noite abrasa:
Que olho eterno ou mão podia,
Ousar-te a fera simetria?
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William Blake in "Canções de Inocência e de Experiência", Assírio & Alvim, Lisboa,
2009, p 88 ( Tradução: Jorge Vaz de Carvalho).
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"Já não era hostil com o Demónio ou o Barril "

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"O Pequeno Vagabundo"

Mãezinha, Mãezinha, a Igreja é fria,
Mas é sã & jovial & quente a Cerv'jaria;
Dizer sei também onde me acho bem,
Tal uso no céu nunca é proceder bem.

Se nos regalassem as almas na Igreja.
Com fagueiro fogo, alguma Cerveja,
A orar cantaria, todo o santo dia,
Ninguém da Igreja escapar queria.

Então o Pastor prega & bebe & canta.
E nós como as aves que maio encanta
E a dona Tereja, que é sempre na Igreja,
Não dava aos moços ralhos clausura ou peleja.

E Deus como um pai exultante por ver,
Seus filhos como ele em gozo e prazer,
Já não era hostil com o Demónio ou o Barril,
Mas dava-lhe pinga e veste & beijos mil.

William Blake in "Canções de Inocência e de Experiência", Assírio & Alvim, Lisboa,
2009, p p 94 ( Tradução: Jorge Vaz de Carvalho).
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